por Juliano Medeiros *
Nesta quarta-feira, ao ler as
matérias das editorias internacionais dos principais jornais do país, me
deparei, na seção “mundo” da Folha de São Paulo, com uma notícia que trazia o
seguinte título: "Projeto venezuelano prevê restringir eleição de deputados
da oposição". Intrigado com a chamada, li o texto atentamente.
Segundo a "reportagem"
assinada por Samy Adghirni, correspondente da Folha em Caracas,
"autoridades" venezuelanas planejam "redesenhar o mapa eleitoral
às vésperas das eleições" para diminuir a representação de redutos da
oposição ao presidente Nicolás Maduro. A afirmação é do jornal El Universal,
opositor confesso do governo bolivariano.
Segundo a matéria, o projeto
ainda precisaria ser "finalizado pelo Conselho Nacional Eleitoral
(CNE)" e aprovado pela Assembleia Nacional, "amplamente dominada por
aliados do presidente socialista, Nicolás Maduro". A mesma matéria destaca
que "críticos" afirmam que o CNE não é independente em relação ao
Executivo e que planejaria alterar a proporção de deputados em cada uma das
circunscrições eleitorais com vistas a beneficiar os deputados bolivarianos.
Como exemplos a "reportagem" de El Universal reproduzida por seu
homônimo brasileiro cita os distritos de Chacao e Aragua. O primeiro,
majoritariamente composto por eleitores "opositores", teria suas
vagas na Assembleia Nacional diminuídas, enquanto o segundo, composto por
apoiadores do governo Maduro, teria suas cadeiras ampliadas no parlamento
nacional venezuelano. No entanto, o texto não cita que informações atestem a
veracidade da afirmação em relação aos dois distritos.
Intrigado com a matéria,
consultei alguns amigos que conhecem bem as leis venezuelanas. Descobri, em
primeiro lugar, que não há nenhum projeto em discussão sobre as leis eleitorais
na Venezuela! Existe, isso sim, o código eleitoral venezuelano. Esse código dá
conta de que é necessário realizar ajustes na representatividade de cada
distrito de tempos em tempos, com vistas a equilibrar o número de habitantes às
vagas disponíveis na Assembleia Nacional. No entanto, não há qualquer
"autoridade" discutindo ou "planejando" nada nesse sentido.
Ou seja, as informações publicadas por El Universal e reproduzidas pela Folha
não passam da mais pura especulação! Ademais, descobri que não é obrigação da
Assembleia Nacional definir as circunscrições eleitorais. Essa é uma atribuição
exclusiva do CNE, razão pela qual, pouco importa se a Assembleia Nacional é
"amplamente dominada por aliados do presidente Maduro", porque não é
ela que aprova temas dessa natureza!
A Constituição da Venezuela, em
seu Título V, capítulo I, afirma que "em cada Estado e no Distrito
Capital, se elegerão três deputados ou deputadas à Assembleia Nacional, mais um
número de deputados e deputadas igual ao resultado de dividir o número de sua
população entre uma base de população igual a um ponto um por cento (1,1%) da
população total do país". Ou seja, a divisão de vagas no parlamento é
determinada constitucionalmente, assim como no Brasil. O que a oposição
venezuelana tem tentado é alterar os prazos de realização do censo, com vistas
a retardar a atualização da divisão das vagas entre os distritos conforme manda
a Constituição da República Bolivariana da Venezuela e assim influenciar o
resultado eleitoral.
Aliás, o Brasil enfrentou recentemente
esse debate. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atualizou as vagas
correspondentes a cada estado na composição das 513 cadeiras que formam a
Câmara dos Deputados. Os parlamentares, rechaçando a prerrogativa do TSE de
decidir sobre o tema, avocaram para si a decisão e impediram a atualização da
relação entre vagas e habitantes, conforme manda a Constituição da República
Federativa do Brasil. No entanto, não vi nenhuma reportagem afirmando que, por
trás dessa medida, havia o interesse do Governo Federal (que então tinha
maioria no Congresso Nacional) de alterar a correlação de forças no legislativo
brasileiro...
Depois dessa pequena
investigação, concluo que:
a) Não há qualquer "projeto
venezuelano" em discussão, como afirma o título da matéria. O que pode
haver é a atualização do quórum em cada distrito, como manda a lei eleitoral
venezuelana, nada além disso;
b) Mesmo que haja, no âmbito do
CNE, discussões que envolvam a obrigatória atualização das vagas destinadas a
cada distrito na Assembleia Nacional, não há qualquer indício de que elas
tenham como objetivo "restringir a eleição de deputados da oposição",
como afirma a matéria;
c) Ainda que seja realizada a
atualização exigida pela Constituição da Venezuela, ele não precisa ser
aprovado pela Assembleia Nacional, "dominada pelos chavistas", como
afirma o texto publicado como notícia.
Não posso deixar de referir-me,
também, à menção que o texto faz em relação à posição de setores
"críticos" que questionam a independência do CNE. O mesmo texto não
faz qualquer referência ao reconhecimento internacional que esse órgão goza e à
total transparência atestada por diversos organismos internacionais em inúmeros
processos eleitorais por ele organizados. Fui observador internacional em
processos eleitorais na Venezuela e atestei em loco a lisura do processo.
Assim, quem são esses críticos? Quem representam? Onde estão? E os organismos
que atestam a independência do CNE, o que dizem a respeito do tema? Por que não
foram ouvidos por El Universal ou pela própria Folha?
Pelo que pude observar, Samy
Adghirni não é um antichavista inveterado, à la Reinaldo Azevedo. Outros
artigos atestam que o autor da "reportagem" é capaz de analisar de
forma mais ou menos equilibrada a realidade venezuelana (embora fique patente
seu desprezo pelo processo bolivariano). Porém, como pude atestar, a reportagem
é de uma desonestidade atroz. Desonesta com os fatos, com a verdade, com a
inteligência dos leitores. Nenhuma novidade em se tratando do jornal da família
Frias.
Portanto, caro leitor, quando se
deparar com uma "reportagem" reproduzida inadvertidamente por um
jornalão brasileiro, assinada por um jornalista irresponsável ou preguiçoso,
desconfie. Nem tudo - ou quase nada - o que se diz sobre a Venezuela no Brasil
é verdade.
*Juliano Medeiros é historiador e
membro da Executiva Nacional do PSOL.
Fonte: site ComunicaSul
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