Gregorio Duvivier, 29 de Janeiro de 2014
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Ninguém está falando sobre isso,
mas nesse exato momento 23 ativistas estão sendo processados por associação
criminosa armada – embora não haja arma, nem crime, nem associação. Além da
ausência de antecedentes criminais, os ativistas tem em comum apenas o fato de
terem participado das manifestações de Junho e, no ano seguinte, contra a Copa.
E só. A maioria dos “associados” se conheceu na cadeia.
Não se sabe qual o critério
escolhido para prendê-los, já que milhões de pessoas protestaram entre Junho de
2013 e Junho de 2014 (entre as quais eu) mas o critério parece ter sido o fato
de serem, em sua maioria, professores – o que, no Brasil, parece ser um crime
imperdoável, especialmente se o acusados forem, como é o caso, funcionários da
rede pública. Fico feliz de não ter feito licenciatura, parei no bacharelado.
Caso contrário, talvez estivesse preso.
Depois de meses de escuta
telefônica em que até os advogados de defesa foram grampeados (isso sim é
crime, senhor Juiz) nada pode ser dito, de fato, contra os manifestantes. Em
determinada ligação, Camila Jourdan, professora da Uerj, pergunta se o amigo
vai levar os “livros” e as “canetas”. O código poderia ter passado
desapercebido, mas a polícia carioca, que anda assistindo muitos episódios de
Sherlock na HBO, descobriu se tratar de uma mensagem cifrada. “Livros”, no
caso, seriam bombas e “canetas” seriam armas.
Imediatamente após decriptar a
intrincada linguagem anarquista, a polícia – sem qualquer mandado de busca e
apreensão - invadiu e revistou a casa dos 23 ativistas. Não encontrou nada.
Aliás, encontrou. Livros e canetas – literalmente. Mas não só. As casas tinham
uma quantidade suspeita de camisetas pretas. Em algumas, máscaras de gás
(direito do cidadão) e, em uma delas, encontraram uma garrafa de gasolina
(aquele mesmo líquido que se usa para abastecer carros e geradores).
Mesmo assim, sem flagrante, foram
presos – para, algumas semanas depois, serem soltos. A mesma sorte não teve o
único preso pelas manifestações que era analfabeto, Rafael Braga. Rafael está
preso até hoje por ter sido encontrado portando uma garrafa de Pinho Sol.
Embora soltos, os manifestantes
tiveram seus direitos políticos cassados. Enquanto aguardam julgamento, não
podem participar de nenhuma reunião pública nem tampouco abandonar sua comarca.
Filipe Proença, professor de história, dava aulas em Piabetá e não pôde mais
comparecer. Deixou de receber o salário e está sofrendo um processo
administrativo.
O julgamento ocorre essa semana
e, apesar de não terem cometido crime algum previsto no código penal, tudo
indica que os manifestantes serão condenados pelo juiz Flavio Itabaiana.
Notável reacionário que se orgulha de nunca ter absolvido ninguém e critica o
discurso “esquerdista” dos advogados de defesa, Itabaiana está lidando com um
processo de sete mil páginas – na vertical, isso dá uma pilha de papel mais
alta que um ser humano da minha altura – ok, não sou alto, mas se eu fosse uma
pilha de papel eu seria. Além de detalhar a vida íntima de cada um dos
manifestantes (numa ligação, uma ativista conta para o namorado que tomou a
pílula do dia seguinte), o processo kafkiano tem momentos preciosos. Em
determinado momento, Bakunin, o anarquista russo do século 19, é citado nas
ligações rastreadas – e a polícia acredita se tratar de um perigoso
manifestante - infelizmente, parece que está foragido. Dizem que namora a
Sininho.
O que é que o Itabaiana tem? Não
tem torso de seda nem saia engomada – tampouco tem a lei a seu favor. A grande
peça no tabuleiro de Itabaiana é a opinião pública. A mesma mídia que condenou
as manifestações e logo depois passou a festejá-las, se voltou novamente contra
elas quando da morte trágica do cinegrafista Santiago. É bom lembrar: não há
qualquer ligação entre os 23 processados e o rojão que matou Santiago (os dois
manifestantes que lançaram o rojão já estão presos faz tempo, e o julgamento
deles, também controverso, é uma outra história).
Não importa. Graças ao
investimento de parte da mídia que queria a reeleição de um governador,
manifestar virou sinônimo de matar cinegrafistas e eis que o gigante adormeceu
– a golpes de matérias tendenciosas e manchetes repulsivas (“estágiário de
advogado afirmou que suposto manifestante teria ligações...). Resultado: a
polícia desceu o pau, a classe média aplaudiu e o Brasil voltou a ser aquele
país sem revolta.
A quem interessa a calmaria? A
muita gente: na calada da noite de reveillon, aumentaram a passagem em 40
centavos. Uma coisa é certa: se houve uma guerra, a máfia do ônibus saiu
vitoriosa.
Vale tentar re-conscientizar essa
mesma opinião pública e lembrar que os ativistas processados estavam lutando
por nós. E querem continuar lutando – dando aulas, lendo livros, usando
canetas. O aumento vertiginoso das passagens prova que a gente precisa deles,
mais do que nunca.
Gregório Duvivier é ator e comediante.
Fonte: site Liga Comunista
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