por AC *
Discurso duplo, jogo duplo.
Enquanto a União Europeia apoia os manifestantes contra o governo da Ucrânia –
inclusive os mais violentos, os grupos fascistas – ao mesmo tempo apoia o
governo corrupto da Bósnia apesar das manifestações populares.
O foco dos nossos media é
selectivo. A 1700 km de Paris, o povo bósnio diz "Não" a um governo
corrompido que privatizou tudo, arruinou o seu país e esgotou todas as manhas
do nacionalismo étnico e do fundamentalismo religioso.
Alguns falam mesmo em
"Primavera bósnia": duas semanas de manifestações populares,
despedimentos de centenas de trabalhadores em empresas de Tuzla que acabam de
ser privatizadas e já estão em falência. Doravante em todas as cidades, de
Sarajevo a Mostar, bósnios, sérvios, croatas reclamam simplesmente
"trabalho e pão".
Bósnia: da miragem da
independência à realidade da dependência
A situação já é conhecida. Um
país em que 44% da população está no desemprego (57% para o que têm menos de 25
anos), um terço abaixo do limiar de pobreza, um país totalmente dependente onde
o défice comercial roça os 30 (4% na Grécia, 2% em França).
A miragem da independência dá
lugar à realidade da dependência agravada face ao capital alemão, aos bancos
austríacos, às tropas europeias. A Jugoslávia socialista, multicultural,
pacífica não senão uma lembrança longínqua, mantida com nostalgia.
A Europa tem uma responsabilidade
pesada nesta situação. Foi ela, em particular a Alemanha, que precipitou o
estilhaçamento da Jugoslávia em 1992 ao reconhecer os secessionistas, a fim de
recuperar a fatia grande do bolo.
Foi ela que impôs, em ligação com
o FMI, "planos de ajustamento estrutural" que contribuíram para
destruir a pequena agricultura do país, a indústria pesada herdada da
ex-Jugoslávia socialista, o sector bancário, com tudo privatizado e passado à
dependência dos capitais estrangeiros.
Bósnia, um país sob tutela
europeia: o Alto representante, um pró-consul
Hoje, a Bósnia é não só um país
dependente mas sob tutela. Como herança dos Acordos de Dayton (1995), o
"Alto representante para a Bósnia" é o verdadeiro mestre do país.
Este alto dignitário
internacional é sempre membro de um país da UE. Ele tem direito de impor
decisões obrigatórios, inclusive contra o parecer dos eleitos locais ou
nacionais, de anular medidas tomadas por estes últimos e até de mesmo de
revogar o mandato destes eleitos.
Foi assim que o Alto
representante impôs a adopção do Marco como moeda nacional, de uma bandeira
nacional (como no Kosovo) muito semelhante à da União Europeia e, naturalmente,
pressionou pela adopção das "reformas estruturais" em vista da adesão
à UE: cortes nas ajudas sociais, baixa de salários, privatizações dos sectores
chave.
A revolta popular que decorre há
várias semanas na Bósnia é uma reacção de cólera contra esta agenda europeia.
Uma agenda que reduziu o país – outrora a região mais próspera da Jugoslávia –
à miséria.
Para o Alto representante:
"há que pensar no envio de tropas europeias"
A primeira reacção foi do
pró-consul, o actual Alto representante para a Bósnia, o austríaco Valentin
Inzko.
Numa entrevista a jornal vienense
Kurier, em 9/Fevereiro/2014, ele advertiu que a situação é "a pior"
desde a guerra civil e lançou um apelo: "Se a situação se degradar,
deveremos pensar no envio de tropas das União Europeia à Bósnia".
O ardente Paddy Ashdown, que foi
Alto representante de 2002 a 2006 e que revogou o mandato de centenas de
eleitos locais bósnios, lança um grito por ajuda: "É preciso que a
comunidade internacional aja agora, ou do contrário receio que a ameaça da
secessão se torne irresistível", declarou à cadeia americana CNN.
Qual foi a resposta dos
dirigentes da União Europeia? Bem diferente daquela dada à Ucrânia. Um apoio
prudente ao governo, uma necessidade urgente de acelerar a integração europeia
... assim como encarar a utilização da força para cobrir a infâmia de um
governo corrompido.
"Que estes dirigentes
mostrem sua liderança, nos os apoiaremos" (Catherine Ashton)
Assim, a chefe da diplomacia
europeia, Catherine Ashton, aconselhou os desacreditados dirigentes bósnios a
dar uma solução aos problemas da população, pela adopção de reformas
económicas, e deu o apoio da UE ao governo sob esta óptica.
"Há muitos dirigentes na
Bósnia-Herzegovina, e já é tempo de demonstrarem sua liderança, nos os
apoiaremos nesta tarefa".
Este não é o mesmo discurso que
teve na Ucrânia face ao governo de Ianukovithch!
Ela acrescentou, em conferência
de imprensa a 11 de Fevereiro: "é preciso que os manifestantes exprimam
suas reivindicações de modo pacífico, sem recurso à violência, que nós
condenamos".
Mais uma vez, pode-se comparar os
apelo diferentes na Ucrânia, onde a repressão governamental foi a primeira a
ser condenada, ao passo que a violência dos manifestantes – frequentemente
organizada por milícias de extrema direita – foi minimizada.
O comissário europeu Stefan Füle
em Sarajevo...
no palácio do governo!
O Comissário europeu para a
integração e o alargamento da UE, o alemão Stefan Füle, foi enviado a Sarajevo
para encontrar ... os líderes dos diferentes partidos bósnios repudiados pelos
manifestantes a fim de encontrar uma saída da crise.
Ele contudo discutiu com eles,
não para exigir-lhes demissão, para impor reformas sociais mas ... o Julgamento
do Tribunal Europeu dos direitos humanos, acabar na Bósnia com as
discriminações que impedem judeus e ciganos de aceder à Presidência e à
Assembleia.
Fule partiu furioso de Sarajevo,
pois os diferentes partidos nacionalistas nada cederam sobre esta questão
central para o seu fundo racista. Ele não deu o menor apoio aos manifestantes,
tentou apenas fazer pressão sobre o governo.
"Pode-se dar-lhes uma ajuda,
como fazemos o tempo todo"
Recorda-se que em Kiev, Catherine
Ashton e também os ministros dos Negócios Estrangeiros alemão e polaco vieram
dar apoio aos manifestantes pró europeus, até na praça Maidan, levando laranjas
aos "indignados" de cabeças raspadas.
Nada de muito diferente de Doris
Pack, adida do Parlamento Europeu para a Bósnia, para quem "a situação
actual pode aproximar a Bósnia da UE (...) se os dirigentes actuais fizerem
esforços para resolver os problemas.
Pode-se dar-lhes uma ajuda, como
fazemos o tempo todo, e mostrar-lhes que estamos sempre interessados no futuro
deste país. Uma forte representação da UE pode convencer as pessoas a juntar-se
novamente à União Europeia".
Junto aos diplomatas dos
principais países europeus, indignados com a situação da Ucrânia, há um
silêncio ensurdecedor. É o que se passa com o ministro dos Negócios
Estrangeiros francês (Fabius) e o alemão (Steinmaier).
Só o ministro dos Negócios
Estrangeiros inglês, William Hague, qualificou a situação na Bósnia como
"advertência à UE", apelando à União Europeia para que acelere a
integração do país no bloco europeu.
Tropas de ocupação europeias na
Bósnia? Mas elas já estão lá!
Sabe-se que a Bósnia ainda abriga
sobre o seu solo tropas europeias. Recorda-se que as forças de interposição da
ONU haviam cedido o lugar, desde 1995, àquelas da NATO (o IFOR depois a SFOR),
elas próprias ultrapassadas em 2004 pelas EUFOR: as forças armadas europeias.
A EUFOR não visava apenas
garantir uma paz desinteressada mas assegurar oficialmente um ambiente
pacificado, inclusive no plano social, para assegurar a transição rumo à
integração europeia.
A partir de 2004, as tropas
europeias passaram de 6500 em 2004, para 2500 em 2007 e hoje a pouco menos de
1000.
Entretanto, a Áustria – ao mesmo
tempo primeiro fornecedor de tropas, potência dominante no sector bancário e
financeiro bósnio e país de origem do Alto representante na Bósnia – reforçou o
seu contingente local, com o envio em Janeiro de 2014 de 130 homens
suplementares.
Pouco importa se a União Europeia
ousará mobilizar tropas na Bósnia – ou antes, reforçar o contingente já
presente. Em qualquer caso, o que revelam as crises paralelas da Bósnia e da
Ucrânia é realmente a hipocrisia dos nossos dirigentes.
Que a mão direita que ajuda
manifestantes duvidosos (nacionalistas mas pró europeus) na Ucrânia não veja
que ela ajuda um governo ainda mais duvidoso (nacionalista mas pró europeu) na
Bósnia.
O original encontra-se em
solidarite-internationale-pcf.over-blog.net/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/ .
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