Antonio Santos- À medida que a bancarrota de
Detroit entra nos últimos trâmites legais, a classe operária da cidade
afunda-se num ciclo de empobrecimento sem fim à vista: uma hecatombe social que
modela o futuro da crise estrutural do capitalismo e se repercute na agenda
imperial.
A história não é nova: em tempos
apelidada de capital automóvel mundial, a cidade que foi nos anos cinquenta o
exemplo proverbial da vitalidade do capitalismo é hoje a metáfora acabada da
sua irreversível decadência. Mesmo após várias de tentativas bilionárias de revitalizar
as indústrias com injeções públicas de capital, sucediam-se as deslocalizações,
as insolvências e os despedimentos. Paulatinamente, o velho capital industrial
cedia ao apelo da financeirização: concentrava-se e desmoronava-se com
vertigens de jogador de casino. Nessa altura, o partido bicéfalo do capital
assegurava que a «economia era mesmo assim».
Mas quando Detroit despertou do
torpor, as indústrias automóveis tinham partido e deixado uma dívida de quase
20 000 milhões de dólares, a maior dívida municipal da história e o pretexto de
que o grande capital precisava. Então, o poder político da cidade foi
substituído por cargos não eleitos, chefiados por Kevyn Orr, o «gestor de
emergência». No entanto, rapidamente se tornou claro que o estado de exceção
estava para durar, em 2013 eram mais seis meses, depois falaram em mais um ano,
agora declaram que Detroit estará sob a ditadura da «emergência» durante mais treze anos.
«A água não é um direito
fundamental»
O consulado de «emergência» de
Orr pôs em marcha a privatização dos museus, dos terrenos públicos e dos
parques de estacionamento. Atirou para o caixote de lixo as reformas de 32 000
funcionários públicos e colocou a gestão da água sob a tutela da Great Lakes
Water Authority, uma mega entidade desresponsabilizada e facilmente
privatizável. Os resultados estão à vista: só desde Janeiro de 2013 a água foi
cortada a 50 000 famílias de Detroit, um número que aumenta em 400 por dia,
criando um monstruoso problema de saúde pública. Para parar este crime, as
vítimas interpuseram um recurso em tribunal, alegando que os cortes de água
violam a 14.ª Emenda Constitucional (usada amiúde para atacar os direitos das
mulheres), que proíbe os estados de «privar qualquer pessoa do direito à vida».
No dia 30 de Setembro o juiz
Federal Steven Rhodes tornou conhecida a sua decisão: nos EUA a água não é um
direito fundamental. Segundo o magistrado «Esse direito não existe na lei. Da
mesma forma que não há direito às necessidades da vida como a habitação, a
alimentação, ou cuidados médicos». Mas mais do que um autêntico tratado e
declaração de princípios sobre a natureza do capitalismo, o veredicto sobre
Detroit é o tubo de ensaio das classes dominantes para os EUA.
Um mundo em agonia
Não é só Detroit que não consegue
sair da crise, são os EUA: é o capitalismo. Segundo Beth Ann Bovino, a
economista chefe da Standard & Poor’s, esta «recuperação» é «a pior dos
últimos 55 anos». Com efeito, a economia caiu 2,9% nos primeiros três meses do
ano e, pela primeira vez na história, a taxa de criação de emprego nos últimos
10 anos foi de 0%. 50 milhões de estadunidenses continuam a viver na pobreza e
20 milhões continuam desempregados. 58% dos poucos empregos criados desde 2010
são remunerados abaixo de 14 dólares à hora e, embora nos últimos quatro anos
os lucros das maiores empresas tenham aumentado 70% para cerca de dois triliões
de dólares, o preço do trabalho como percentagem do PIB baixou para o valor
mais baixo dos últimos 65 anos. Por toda a economia estadunidense, avisam os
gurus neoliberais, formam-se novas e gigantescas bolhas especulativas. De crise
sistémica em crise estrutural, o capitalismo apresenta uma cada vez maior
dificuldade em recuperar. De recuperação em recuperação e em afronta ao
progresso tecnológico e científico, os povos são cada vez mais pobres. O
capitalismo assume frontalmente a inépcia de não conseguir assegurar nem os
direitos mais básicos, como a água.
Como em Detroit ou Ferguson, é
cada vez mais difícil cumprir os interesses do capital sem recorrer à violência
nem suspender os formalismos da democracia burguesa. As cidades dos EUA
convertem-se proporcionalmente em versões microscópicas da política externa
norte-americana. A administração de Obama (Nobel da Paz) já bombardeou e
invadiu sete países (Líbia, Iraque, Afeganistão, Iémen, Síria, Somália e
Paquistão) em obediência aos monopólios financeiros. Ao mesmo tempo, reprime
brutalmente o seu próprio povo. Para matar a gula de uns e matar os outros à
fome.
Fonte: Avante
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