por MK Bhadrakumar.*
O presidente Barack Obama está
fixando um novo precedente na história dos EUA como potência imperialista. Ele
já praticamente pediu desculpas, antes de ordenar um ataque militar contra um
país soberano com o qual os EUA não estão em guerra e que não ofendeu, nem
remotamente, interesses e preocupações vitais dos EUA.
A administração Obama divulga
antecipadamente que os EUA farão um ataque militar “limitado” à Síria. Quis
informar, até, para quando se pode esperar o referido ataque – mais
provavelmente na 5ª-feira. Quem agora duvidará de que Obama seria estadista
humano e respeitoso?
Por ataque “limitado”, Obama quer
dizer que não atacará diretamente arsenais de armas químicas, mas só os
“sistemas de entrega”; significa que só atacará a Força Aérea Síria e as
unidades do Exército capazes de efetuar um ataque com armas químicas. E quem
esteja no comando das forças armadas do país e, portanto, nos sistemas de
“comando e controle” das forças armadas sírias, também serão alvejados.
Em suma, o plano, por trás do
ataque “limitado”, é degradar as forças armadas sírias. O objetivo político é
claro. A administração Obama insiste em que não se trata de ataque para
“mudança de regime”. Significa que os EUA e seus aliados teriam esperança de
que, submetidas à imensa pressão da morte e da destruição, as forças armadas
sírias automaticamente se porão, afinal, a questionar a qualidade da liderança
do presidente Bashar Al-Assad, o que, por sua vez, pode levar a golpe contra
ele, o que não seria “mudança de regime”, mas, mesmo assim, seria “mudança de
regime” bem satisfatória.
A experiência do Iraque ensinou
aos EUA sobre a importância crucial de manter intactas tanto quanto possível as
estruturas e instituições do Estado – leia-se, as forças armadas, o establishment
de segurança e a burocracia – em países nos quais o regime mude de mãos de
acordo com a vontade dos EUA.
O risco envolvido é grande
porque, implícita nessa situação está tanto o “sabido” (o que se sabe que se
sabe) como o “não sabido não sabido” (o que não se sabe que não se sabe e é,
portanto, desconhecido), como advertiu certa vez o antigo Secretário da Defesa,
Donald Rumsfeld. Para citar a declaração à imprensa de Rumsfeld em fevereiro de
2002: “Há saberes conhecidos; é o que sabemos que sabemos. Há incógnitas
conhecidas, isto é, há coisas que agora sabemos que não sabemos. Mas também há
incógnitas que não vemos; é o que não sabemos que não sabemos”.
Rumsfeld falava então no contexto
do Iraque e prognosticava que os principais perigos da confrontação vinham das
“incógnitas que não vemos”, que eram ameaças de Saddam e completamente
imprevisíveis.
Situação na Síria em meados de
junho/2013
Basta isso, para que se possa
dizer que está muito longe de estar claro, seguro e garantido que o governo
Obama alcançará seu objetivo, porque até agora só se considerou o que se sabe
que se sabe da Síria. Mas, sim, está bem claro, num sentido muito mais vasto e
profundo, o seguinte;
Primeiro: este movimento para
atacar a Síria decorre de um plano mestre que os EUA (e a OTAN) mentem, desde o
início, que não existiria. A arte da dissimulação, aperfeiçoada ao ponto
supremo. Os EUA fizeram uma conversão abrupta na estrada que levaria a
Genebra-2, sem se darem o trabalho de explicar por que, e unilateralmente
concluíram, sem ter nenhuma prova real, que o governo sírio deveria ser
considerado responsável pelos mais recentes ataques com armas químicas perto de
Damasco.
Segundo: quando os tempos são
difíceis, os EUA unem seus aliados e formam uma “coligação de vontades”. A
desordem que houve entre, de um lado os EUA e de outro seus aliados do Golfo
Pérsico (e Israel), sobre a mudança de regime no Egito, afinal, não passou de
pequena altercação entre vendedores de mercado de peixe. Quando surge a
necessidade e aparece o momento, eles infalivelmente se deslocam juntos, como
lobos em alcateia.
Terceiro: os EUA interpretam
unilateralmente o direito internacional e não têm pruridos para lançar ataques
militares sem mandado do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Embora
regidos por democracia que declara os valores da democracia “inclusiva”, os
governos norte-americano agem sem qualquer atenção à opinião pública interna.
Pesquisas de opinião nos EUA já mostraram que não chega a 10% a fatia dos
norte-americanos que quer que seu país se envolva, seja como for, na guerra
civil da Síria.
Quarto: Obama tem-se dedicado a
jogar areia nos olhos da opinião pública mundial, criando a impressão de que
não haveria mais “Afeganistões” e “Iraques” e que ainda cambaleia de sofrimento
cada vez que chega mais um saco de cadáver, da guerra afegã, e ele tem de assinar
a carta de condolências à família enlutada. A invasão dos EUA ao Iraque
resultou na morte de centenas de milhares de civis inocentes, que não deixam
cicatrizes na sensibilidade de Obama.
Mas a melhor e mais profunda
lição que se pode extrair disso tudo, desde que os EUA começaram a contagem
regressiva para atacar a Síria é outra, e exige outra pergunta: por que a
Síria? Por que não a Coreia do Norte?
Não é difícil responder. Como os
analistas militares da CNN não se cansam de explicar, a nova guerra será
operação militar sem risco de baixas norte-americanas. O ataque à Síria será
encenado a partir do mar azul, com mísseis cruzadores. Não se usarão sequer
aviões tripulados por norte-americanos, de medo que sejam abatidos.
Os analistas americanos explicam
que as forças armadas sírias já estão super-tensas após dois anos de combate
aos rebeldes por todo o país. Insistem que a Síria sequer conseguiu retaliar,
contra repetidos ataques aéreos israelenses – algo impensável há apenas um par
de anos. Em suma, a Síria não tem poder de dissuasão.
É onde Kim Il-Sung e Kim Jong-il
mostram suas qualidades de líderes visionários. Ambos deixaram como herança ao
atual governo de Kim Jong-un em Piongiang um poder de disuasão que obrigará
Obama a pensar, não duas vezes, mas várias vezes, antes de atacar militarmente
a Coreia do Norte. [1] E nesse ponto, exatamente, o pai de Bashar parece ter
vacilado.
Para o Irã, doravante, tudo isso
pode ser lido como peça dramática, com “moral da história”. Naturalmente, o
regime iraniano observa com muito respeito e seriedade os decretos islâmicos
(fatwas) que lhe vêm de seu Líder Espiritual e Supremo Líder, e que proíbem o
estado de iniciar um programa para produzir armas nucleares. Mas, será sábio
insistir na obediência?
Afinal de contas, é preciso
primeiro estar vivo para obedecer decretos islâmicos – vale também para os
persas. A questão é: o iminente ataque dos EUA à Síria deve ser escutado como
estridente campainha de despertador, pelo regime iraniano. Deve despertá-lo,
bem alerta, para a luta existencial que terão pela frente.
Como Teerã poderia levar a sério
a palavra de Obama? Ainda na semana passada emergiu oficialmente dos materiais
de arquivo dos EUA, que o golpe de 1953 contra Mohamed Mossadeq foi operação da
CIA; e que os horrendos ataques com armas químicas das forças de Saddam Hussein
só foram possíveis, porque Saddam contava com informações cruciais de
inteligência que a CIA lhe fornecia.
O que, de tudo isso, teria mudado
sob Obama? A liderança iraniana deve ponderar calmamente e coletivamente.
Seja qual for o resultado do
iminente ataque dos EUA à Síria, e que está destinado a ter trágicas
consequências, Teerã deve tomar uma decisão, que é crucial para salvaguardar-se
contra agressão semelhante. O único meio de conseguir isso é construir para si
o poder dissuasivo que a Coreia do Norte possui – e poder que mantém os
predadores à distância.
A opinião pública mundial
entenderá. Os mansos também têm direito moral à autodefesa – ainda que estejam
longe de herdarem a terra como Deus profetizou. Essa seria, então, a mais
refinada herança do governo Obama, ao mundo: um Irã nuclear.
Nota dos tradutores
[1] Sobre isso, ver também,
interessante: 5/9/2011, redecastorphoto em: Pepe Escobar: “O Amado Líder e o
Oleodutostão”, Asia Times Online.
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata
de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Irã, Afeganistão e Paquistão e escreve
sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The
Hindu, Asia Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran
(1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.
fonte: Desacato.info
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