No próximo dia 8 de abril, terá
início o julgamento dos policiais militares acusados de matar pelo menos 111
homens na implodida Casa de Detenção do Carandiru, episódio que ficou conhecido
como “Massacre do Carandiru”. É compreensível que aquelas e aqueles que refutam
a história oficial e que o denunciam como chacina clamem agora por “justiça” e
exijam do Estado a responsabilização dos envolvidos no Massacre.
No entanto, devemos lembrar que
esse mesmo Estado, ora chamado a “fazer justiça”, é peça fundamental na
estrutura social que permitiu a ocorrência do Massacre do Carandiru e de tantos
outros massacres que marcaram (e ainda marcam) a nossa história.
No contexto desse julgamento,
cumpre-nos, sem dúvida, mais uma vez, desconstruir a versão oficial de que o
episódio foi mero ato de contenção de uma rebelião e desvelar que os (ao menos)
111 homens, em sua maioria jovens e negros, desarmados e indefesos, foram cruelmente
exterminados, com autorização vinda diretamente do gabinete do Governador.
Mais do que isso, porém, é
fundamental revelar e enfrentar a dinâmica social que produziu esse Massacre e
que se aperfeiçoou desde então. A chacina ocorrida em 2 de outubro de 1992 não
é um fato isolado na história do Brasil: o Massacre do Carandiru insere-se numa
longa trajetória de massacres que fundaram o país – extermínio dos povos
indígenas e escravização dos povos africanos – e que constituem o cotidiano do
povo pobre e negro que habita estas terras.
Expressão e resultado de um
intenso e violento processo contra uma parcela da população, em sua maioria
negra, o Massacre do Carandiru marca ainda o início de um processo de
encarceramento em massa, mecanismo essencial da engrenagem da política
neoliberal adotada pelos governos brasileiros a partir da década de 90.
A pretexto de resolver os
problemas da superlotação prisional e das péssimas condições de encarceramento
que teriam levado à rebelião na Casa de Detenção do Carandiru, iniciou-se uma
política de construção e interiorização de presídios, que se generalizou por
todo o país. O resultado foi a explosão da população prisional brasileira. O
número de pessoas presas saltou de 90 mil, em 1990, para 550 mil, em 2012. O Brasil
sextuplicou a população encarcerada num período aproximado de 20 anos,
crescimento sem precedentes mesmo entre os três países com maior população
prisional (o Brasil é o 4º no ranking).
Mais de meio milhão da população
brasileira vive, portanto, sob a prática constante e sistemática da tortura
física e psicológica, inerente à privação de liberdade e à disciplina
penitenciária.
A maior parte da população
amontoada nos superlotados e degradantes presídios brasileiros é negra (60%).
Cerca de 80% da população prisional está presa por crimes contra o patrimônio
ou tráfico de drogas, condutas imputadas às pessoas pobres para quem resta ou
procurar um ofício miserável dentro da legalidade ou se socorrer de caminhos
informais (e ficar ainda mais vulnerável ao aparato repressor).
Apesar de a grande maioria (93%)
da população encarcerada ser formada por homens, o crescimento da população
prisional feminina é superior à masculina. Desde 2006, em razão do
recrudescimento da Lei de Drogas, o Brasil vem encarcerando em massa mulheres
cujo perfil (jovens, pobres e negras, principais ou exclusivas responsáveis
pelo sustento da família) revela o caráter patriarcal do processo de
criminalização sobre elas.
E o massacre continua. Estima-se
que pelo menos mais meio milhão de pessoas (pobres) esteja vivendo sob a égide
da violência penal do Estado Brasileiro que extrapola os muros dos cárceres.
Ensinadas ou responsabilizadas desde pequena aos cuidados com o outro, são
elas, mães, esposas e irmãs, que amenizam o sofrimento cotidiano de seus entes
queridos, sendo expropriadas e violadas ao empregarem seus esforços, suas
economias e seus corpos no périplo do dia de visita e na busca do alvará de
soltura.
A ordem para esse encarceramento
seletivo e em massa é complementar à ordem, muitas vezes expressa, para matar.
A autorização para executar a população pobre, jovem e negra que povoava o
Carandiru naquele 2 de outubro não se encerrou ali e não cessará com o
julgamento dos PMs.
O genocídio da população pobre e
preta, que deita suas raízes no período escravocrata, segue como pilar das
gestões que sucederam à de Fleury e como pressuposto da manutenção de uma
sociedade extremamente desigual, em que poucos se fartam com a exploração de
muitos. No Brasil, a cada 10 jovens assassinados, 7 são negros!
Por todas essas razões, ainda que
julguemos fundamental a responsabilização dos policiais envolvidos e do
mandatário do Massacre, Antônio Fleury Filho, a derrocada dessa ordem que se
sustenta a partir do extermínio do povo pobre e negro, nos dois lados do muro,
e no dia a dia, e da qual o Massacre do Carandiru é produto e expressão,
somente se dará com a organização e a luta popular contra esse Estado Penal e
contra as classes abastadas que dele se valem para manter seus domínios.
Fonte: Rede 2 de outubro.
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