Brasil - Diario Liberdade - Muitas são as
ações atuais que têm sido associadas aos tempos de ditadura civil-militar.
Não só a Lei de Segurança
Nacional de 1983, que voltou a ser consultada recentemente, mas também a ação
violenta da polícia e a criação de novas leis com caráter ainda mais
repressivos têm cerceado direitos fundamentais da Constituição, como o de
reunião e manifestação. Nesta entrevista, o professor de direito penal do
Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) e membro da Comissão
Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e do
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Taiguara Souza, aponta os
principais problemas destas atuações dos poderes Executivo e Legislativo no
Brasil desde as manifestações de junho.
Como você avalia todo este
endurecimento em relação à prisão de manifestantes?
Nós observamos que há um traço
comum nessa resposta do Estado às grandes manifestações que têm eclodido nas
metrópoles do Brasil: o excessivo uso da força do aparato policial. Temos ações
das instituições policiais que não condizem com as garantias e os princípios
basilares do Estado democrático de direito. O que nós temos, na realidade, é o
que chamamos de criminalização dos movimentos sociais. Essa resposta altamente
truculenta e violadora dos direitos fundamentais busca ocultar a legitimidade
da reivindicação, que é trazida por esses movimentos, organizada nessas vozes
que se manifestam nas ruas. Sem dúvida, não há respaldo jurídico para o
excesso. Em nenhum contexto, é possível tirar essa prerrogativa que qualquer
cidadão tem.
Como você avalia o caso do casal
de São Paulo que foi enquadrado pela Lei de Segurança Nacional. Esta lei ainda
tem validade? Ela é legalmente adequada para a situação dos manifestantes?
Essa lei é de 1983. Cinco anos
depois, foi promulgada a Constituição Federal e uma legislação desta natureza
entra em conflito com o conteúdo da Constituição. Por uma série de razões essa
lei, portanto, não pode prosperar. Primeiro porque a Constituição tem
hierarquia sobre qualquer lei. Segundo porque, embora não tenha sido revogada
de maneira expressa, ela não foi recepcionada pela Constituição. Quando saímos
de um regime de exceção e entramos numa suposta democracia, aquela legislação
anterior à nova Constituição, que demarca o Estado democrático de direito,
entra em descompasso com a nova legislação. A doutrina chama isso de um
fenômeno de não recepção da norma. Ainda que esteja em vigor, ela não pode ser
aplicada porque está em descompasso com essa ordem jurídica que surge em 1988.
Portanto, uma lei que é característica de um Estado ditatorial não pode vigorar
em regime democrático.
Como você avalia a lei do estado
do Rio de Janeiro que proíbe uso de máscaras em manifestações no Rio?
Juridicamente, existem pontos críticos nessa nova lei?
Tanto a lei de 1983 quanto esta
de agora têm como objetivo a restrição de garantias fundamentais que são
previstas na Constituição. A lei aprovada no Rio de Janeiro padece de uma série
de problemas. Ela foi criada com o objetivo, pelo menos no seu discurso, de
evitar o anonimato na manifestação política. O argumento na confecção da lei é
de que na Constituição Federal o direito de manifestação é condicionado à
realização desta sem o anonimato. De fato, a Constituição estabelece isso, mas
o que ocorre é que esta liberdade de manifestação não coíbe o outro direito que
é o de liberdade de reunião. Então, o que ocorre nas manifestações nas ruas é o
direito de reunião, porque as pessoas se reúnem nas ruas para levantar uma
plataforma política. Esta lei não poderia de maneira nenhuma cercear o direito
de reunião, que é uma norma que nós chamamos de eficácia plena, que não pode
ser limitada por outra norma. A liberdade de reunião não pode ser restringida
por outra lei. Outra questão que decorre desta lei estadual também remonta a um
fato que era característico da ditadura militar, que é a prisão por
averiguação. Em razão desta lei, agentes policiais estão conduzindo
manifestantes mascarados ou que estejam portando máscara para prestar
esclarecimento para serem identificados na delegacia. Isso é muito criticado
porque, em um contexto em que a polícia militar tem sido observada por um
grande número de condutas arbitrárias, essa condução até a delegacia também
pode gerar outros arbítrios, ainda na viatura ou na própria delegacia. Essa
detenção por averiguação não ajuda a garantir o processo democrático porque dá
muito poder ao arbítrio policial. Outra questão ainda sobre essa lei é que ela
trata de um conteúdo que tem influência no processo penal quando permite essa
detenção para averiguar o cidadão. A Constituição estabelece que, quando tem influência
no processo penal, essa legislação tem que ser de competência do Congresso
Nacional , ou seja, tem que ser uma lei federal e não estadual, como é o caso.
Certamente, ao ser questionada no Supremo Tribunal Federal, eles vão considerar
inconstitucional porque se trata de assunto para uma lei federal e não
estadual.
Ainda no Rio de Janeiro, 70
pessoas foram presas de forma arbitrária durante a manifestação do dia 15 de
outubro. A prisão delas, até onde sabemos, foi possível devido à Lei de
Organizações Criminosas. Esse enquadramento é válido?
O número informado por
organizações que têm atuado em defesas dos manifestantes foi o de 84 detenções
que geraram prisões naquele dia. Entre adultos e adolescentes, o número de
detenções supera o de 200 pessoas. Deste total, 27 foram acusados deste crime
novo que é chamado de organização criminosa. Tivemos em agosto esta lei
aprovada, que começou a vigorar em setembro, e cria no seu artigo 2º, este
crime. E qual é o objetivo do legislador com esta nova lei? Punir aquele que
integra uma associação de quatro ou mais pessoas que se organizam de maneira
estruturada para a prática de crimes com o objetivo de ter uma vantagem. Há um
detalhe importante também: crimes praticados por esta organização devem ser
punidos com penas acima de quatro anos. A intenção, portanto, é coibir
milícias, facções organizadas de crimes, crimes econômicos praticados por
grandes corporações, seja na área de transporte ou empreiteiras que tenham
relações criminosas com o setor público. Aí, sim, podemos considerar estas
organizações como criminosas, que possuem tentáculos, estrutura. De maneira
alguma, a autoridade policial poderia imputar àquele que está exercendo o seu
direito de manifestar sua opinião ou o direito da liberdade de reunião este
delito. Em muitos casos, tentaram imputar a manifestantes essa conduta da lei
de organizações criminosas, mas como é necessário também demonstrar que esse
acusado teria praticado ou teria se organizado para praticar crimes com pena de
quatro anos, em muitos casos, a autoridade policial declina da ideia de aplicar
esta lei, e acaba aplicando contra o manifestante o crime de formação de
quadrilha, já previsto no código penal, no artigo 288 - que é organizar três
pessoas ou mais para praticar qualquer tipo de crime. Evidentemente é outra
imputação arbitrária, criminalizante, que busca tirar o foco das reivindicações
que são legítimas criar na opinião pública o imaginário de que essas pessoas
que estão ali são vândalos, criminosos e que deveriam ser punidos, que deveriam
ser privados da sua liberdade.
O jornal O Globo estampou, na
capa, o rosto de três presos recentemente em manifestações e, na manchete,
chamava os 70 presos de vândalos. A maioria deles, no entanto, foi solta por
falta de provas. Existe alguma ilegalidade na atitude do jornal? É passível de
alguma ação judicial?
Se o jornal teve acesso a essas
informações e imagens do inquérito, há também um desvio não só de violar o
direito de privacidade desses manifestantes, desses cidadãos - o que certamente
cabe como resposta legal para uma ação indenizatória por danos morais ou até
mesmo por danos materiais, caso esse sujeito venha a ter consequências
econômicas como, por exemplo, perder o seu emprego ou trabalho de freelancer
por ser associado a prática de crimes, ou perder os seus rendimentos na
proporção que tinha antes, por conta deste tipo de vinculação que são negativas
e difamatórias. É possível ainda uma ação indenizatória contra o Estado, porque
o acesso aos dados no inquérito não é permitido a qualquer pessoa, apenas às
que são implicadas no processo. Evidentemente não é legal o acesso a
informações do processo para uma pessoa que não representa os interesses do
acusado e que também não representa o Ministério Público, que vai, depois, com
essas informações colidas pela polícia, apresentar a denúncia, caso exista alguma
conduta que é considerada de fato criminosa. Essas informações não podem ser
veiculadas, são informações que devem ser preservadas pela autoridade policial.
Por que alguns manifestantes
conseguiram a liberdade e outros não?
Acontece que não ocorre apenas um
inquérito. Os registros de ocorrência foram feitos em delegacias diferentes e
apresentam versões distintas Pode-se imputar condutas criminosas em uns, em
outros pode não haver, alguns podem ter provas convincentes, outros não. E
esses registros vão para uma vara criminal, e, mais uma vez, vão ser submetidos
a uma avaliação subjetiva. O juiz vai interpretar essa ocorrência de uma
maneira distinta.
Têm-se caracterizado os
manifestantes presos como presos políticos. Você concorda com essa avaliação?
Na criminologia crítica, vamos
encontrar alguns autores que defendem que todos os presos são presos políticos,
todo condenado é condenado por uma motivação política, porque o direito penal
não atinge todas as pessoas da mesma forma, existe uma seletividade do direito
penal. Essa seleção tem critérios políticos não só na punição do cidadão
manifestante, mas também quando pune o tráfico de drogas na favela, mas não
pune o tráfico de drogas no condomínio de luxo na zona sul. A mim parece que
talvez fosse mais adequado falar destas prisões arbitrárias que estamos
observando agora como prisões de manifestantes ou não manifestantes.
A polícia prende e o judiciário
solta. Qual tem sido o papel desempenhado pelos governos Executivos, que
comandam as polícias, e pelo Judiciário na garantia dos direitos a partir das
atuais manifestações?
Essa é uma falsa dicotomia de que
a polícia prende e o judiciário solta. A polícia aplica a lei e o Judiciário
também. Não deveria haver essa dicotomia. Nós temos observado que o poder
Executivo tem uma influência muito forte nas ações policiais. Vimos
recentemente uma ação do governador Sérgio Cabral, e, se eu não engano, do
secretário de segurança, José Mariano Beltrano, alegando que seria adequado
aplicar a lei de organizações criminosas para os manifestantes. Essa é uma
declaração que não deve ser feita nem pelo governador nem pelo chefe de
segurança nem pela chefe da Polícia Civil. Essa é uma avaliação que deve ser
feita pelo delegado quando são apresentados a ele os dados, as provas que foram
colhidas pelo policial ou no caso de se efetuar a prisão em flagrante. Então,
na realidade, nós observamos que há, sem dúvida, uma influência do poder
Executivo nesse modus operandi da polícia. A polícia, por sua vez, atua muitas
vezes valendo de flagrantes forjados ou o delegado se baseia apenas no
depoimento do policial. Nós temos no Brasil, infelizmente, o chamado princípio
de presunção da veracidade e da legitimidade dos atos do poder público, que
significa que como o policial tem fé pública, um simples depoimento dele, mesmo
que não apresentando outras provas, é suficiente para garantir uma prisão
provisória e capaz de influenciar o juiz na hora de sentenciar o acusado. O
problema é gravíssimo nesta instituição e demonstra o quanto é urgente a
reforma da polícia.
No que se refere ao poder
Judiciário, quando ele percebe que a prisão realmente foi executada de maneira
arbitrária, sem lastro probatório, acaba relaxando. Mas, infelizmente, não é
também todo representante do poder judiciário que tem a interpretação
constitucionalmente adequada diante deste tipo de situação. Nós temos também
juízes que têm manifestado interpretações que são conservadoras.
Temos presenciado muitas
arbitrariedades no momento da repressão e da prisão, como a criação de
obstáculos para a presença de advogados, a omissão de informações sobre quem
comanda as operações ou sobre a delegacia para onde os presos serão levados,
entre outras. Existe algum meio jurídico para conter ou punir essas atitudes?
A instituição policial, como
qualquer da administração pública, deve ser submetida a controle, tanto interno
quanto externo. O controle interno da polícia é feito pela corregedoria. Se há
alguma irregularidade policial, ela deve ser comunicada a este setor. O que ocorre
é que, como há um número muito grande de irregularidades, e também em razão de
uma tradição de corporativismo que nós temos observado na polícia brasileira, a
corregedoria por si só não dá conta. Nós precisamos de outros mecanismos de
controle. O órgão público que tem função constitucional para exercer o controle
externo da polícia é o Ministério Público. Por isso, é tão importante cobrar do
MP que exerça essa função. Além disso, existem outros canais importantes que o
cidadão pode acionar, como a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa, que tem recebido denúncias, e cobrado a resposta de entidades
competentes, a Ordem de Advogados do Brasil, que é relevante e tem prestado um
auxílio importante aos manifestantes que estão sendo violados, por meio da sua
comissão de direitos humanos. Para além disso, é claro, organizações da
sociedade civil que são dedicadas à defesa dos direitos humanos.
Qual deve ser o papel da polícia
nas manifestações e protestos populares num Estado de direito?
O papel da polícia diante de um
Estado democrático de direito é garantir direitos fundamentais de qualquer
cidadão. Não cabe à polícia, em nenhuma hipótese, praticar o uso excessivo da
força. É claro que em uma situação de comprovada necessidade, a polícia pode
fazer uso moderado e proporcional da força, mas o que tem-se observado nessas
manifestações é uma repressão indiscriminada, sem critérios, que manifesta uma
visão de que aquele cidadão que está nos protestos populares é considerado
inimigo, que deve ser combatido. A ação da polícia remonta à ideia do toque de
recolher, muito característico da época da ditadura, que é retirar o
manifestante da rua. Não importa se ele estava praticando uma conduta
delituosa.
O que é o uso proporcional da
força que você diz? Como a polícia deveria reagir ao se deparar, por exemplo,
com a quebra das vidraças, incêndio em lata de lixo?
É importante que se diga que em
nenhuma hipótese é adequado o uso de armas letais para conter aquilo que a
polícia chama de distúrbios civis. Evidentemente, não seria difícil gerar um
resultado com morte com uma ação como esta. Para além disso, o uso moderado e
proporcional das armas chamadas não-letais, que temos classificado como armas
menos letais porque também geram casos letais - vide o caso recente no Rio de
Janeiro, em que um manifestante veio a óbito em razão de uso excessivo dos
gases de pimenta e gás lacrimogêneo pressupõe que, se o manifestante não está
agindo de forma violenta, não há nenhum motivo para ele receber uma reação violenta
do aparato policial. Não justifica o uso de bala de borracha, de gás de
pimenta, de bomba de efeito moral se não há ação violenta por parte dos
manifestantes. Agora, se em alguma circunstância, seja constatado que o
manifestante está praticando uma conduta considerada criminosa, o policial pode
e deve agir, mas jamais provocar lesões corporais ou atingir partes sensíveis
do corpo. O que temos visto é o contrário, é a total ausência de critérios em
sua atuação. Ao que parece, os policiais têm se direcionado a essas
manifestações com uma sede de reprimi-las com violência.
Você disse que o manifestante é
visto como inimigo e que a polícia já vai com sede de repressão. Isso tem
alguma relação com a formação militar da polícia?
Na maioria das democracias
ocidentais, as polícias não possuem formação militar. Isso é mais comum em
regimes ditatoriais. O que ocorre é que o treinamento de uma instituição
policial militar é voltado para o combate, que pressupõe a lógica da guerra. E
diante da guerra, a ideia de que o outro lado tem direitos e garantias se torna
frágil nesta lógica militar. Não há dúvida de que está mais do que na hora de
se discutir isso. Há duas semanas mais ou menos foi apresentado pelo senador
Lindbergh Farias (PT-RJ) uma proposta de emenda constitucional (PEC) que busca
pôr fim ao caráter militar da polícia. Busca então, uma reforma profunda na
polícia militar. Mas essa não é a única resposta necessária. É preciso uma
reforma das polícias em geral. Temos violações praticadas pela Polícia Civil
também. O batalhão de polícia especial da Polícia Civil tem atuado nas
manifestações e vem violando direitos também. Além de pensar a
desmilitarização, é preciso um reforma na polícia como um todo, de forma
profunda, que priorize a inteligência, a formação e a capacitação. Enfim, que
coloque a ação policial em conformidade com a nossa Constituição.
Entrevista concedida à Viviane
Tavares - Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Fonte: site Diario Liberdade e EPSJV
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