Mauro Iasi
Nosso objetivo final é a
supressão do Estado,
isto é, de toda a violência,
organizada e sistemática,
de toda coação sobre os
homens em geral”
Lenin
A maior de todas as violências do
Estado é o próprio Estado. Ele é, antes de tudo, uma força que sai da sociedade
e se volta contra ela como um poder estranho que a subjuga, um poder que é
obrigado a se revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento
jurídico que legitime a opressão de uma classe sobre outra. Nas palavras de
Engels é a confissão de que a sociedade se meteu em um antagonismo
inconciliável do qual não pode se livrar, daí uma força que se coloque
aparentemente acima da sociedade para manter tal conflito nos limites da ordem.
A ideologia com a qual o Estado
oculta seu próprio fundamento inverte este pressuposto e o apresenta como o
espaço que torna possível a conciliação dos interesses que na sociedade civil
burguesa são inconciliáveis. A contradição existe no corpo da sociedade
dividida por interesses particulares e individuais, enquanto o Estado, ao gosto
de Hegel, seria o momento ético-politico, a genericidade como síntese da
multiplicidade dos interesses. A este momento político universal se contrapõem
o dissenso, a rebeldia, o desvio e este deve ser contido nos limites da ordem,
do que resulta que todo Estado é o exercício sistemático da violência tornada
legítima.
Desde Maquiavel que a teoria
política moderna sabe que a violência não pode ser o instrumento exclusivo do
Estado, o uso adequado da violência (para Maquiavel aquele que atinge o
objetivo de conquistar e manter o Estado) deve ser combinado com as formas de
apresentá-lo como legítimo, o que nos leva à síntese entre os momentos de
coerção e consenso, a famosa metáfora maquiaveliana do leão e da raposa.
Poderíamos dizer que a violência só é eficaz quando envolvida por formas de
legitimação da mesma forma que os instrumentos de consenso pressupõem e exigem
formas organizadas de violência. O leão e a raposa são igualmente predadores,
suas táticas é que diferem.
A separação entre violência e
consentimento, entre coerção e consenso, serve às vestes ideológicas que
procuram apresentar o Estado como uma função necessária e incontornável da
sociabilidade humana. Nesta leitura ideológica, uma vez constituída a
sociabilidade sobre as formas consensuais expressas no ordenamento jurídico,
nas normas morais e imperativos éticos aceitos e compartilhados, a violência
fica como uma espécie de reserva de segurança para conter os casos desviantes.
Assim, a violência é apresentada como exceção e o consentimento como
cotidianidade. O Estado é a garantia que a violência será coibida.
Nada mais enganador. A violência
é resultante da contradição inconciliável que fundamenta nossa sociabilidade e
portanto ela é cotidiana, onipresente e inevitável. Ainda que disfarçada de
formas não explícitas como nos consensuais procedimentos legais e fundamentos
jurídicos, como valores morais ou formas aceitas de ser e comportar-se. Até
Durkheim sabia disso quando afirmava que as formas de ser, agir e pensar são
impostas coercitivamente e se não percebemos esta coerção nas formas
cristalizadas como hábitos não é porque ela não exista, mas porque já foi
realizada com eficiência.
Mesmo a violência explícita é
cotidiana. Ela é explícita e invisível, se mostra para ocultar-se. No
preconceito que segrega, na miséria que aparta, na polícia que prende, tortura
e mata, na moradia que se afasta, nas portas que se fecham, nos olhares que se
desviam. Na etiqueta de preço nas coisas feitas em mercadorias que proíbem o
acesso ao valor de uso, no mercado de carne humana barata na orgia de
valorização do valor, sangue que faz o corpo do capital manter-se vivo.
Mas ela também é explícita e
visível. No tapa na cara do trabalhador na favela dado por um homem de farda e
armado. Na fila de cara para o muro sendo apalpados, nos flagrantes forjados ou
não, no saco de plástico na cabeça, na porrada, no chute na cara, no choque nos
testículos. Na cabeça para baixo, olhos para o chão, mãos na cabeça, coração
acelerado. Na humilhação de ser jogado no camburão, na delegacia, como carga de
corpos violentados nos presídios, longe de direitos e mesmo de procedimentos
elementares, muito longe de recursos e embargos infringentes.
Um doente aidético, chora em sua
cama na enfermaria do antigo presídio do Carandiru e atrapalha o sono do agente
penitenciário. É espancado em sua cama com um cano de ferro. O cano da arma na
boca da criança que dorme nos degraus da igreja na Candelária. O viciado
arrastado à força para o “tratamento”. O louco impregnado de medicamentos. A
família que vê o trator derrubar sua casa na remoção para viabilizar a Copa do
Mundo de futebol. A mãe que reconhece o corpo de seu filho assassinado no mato
e ouve do delegado para deixar quieto e não fazer ocorrência. Ela parou de
falar, obedeceu.
Mas haveria uma ligação entre
esta violência dispersa e multifacetada e o Estado como garantia da ordem
burguesa? O Estado parece deixar-se distante disso tudo. Certo que são seus
agentes que operam esta violência cotidiana, mas o Estado trata, como cabe a
uma universalidade abstrata, de abstrações. Ele traça os planos, as metas, as
políticas. Ele elabora o PRONASI, um programa nacional de segurança e
cidadania, no qual os objetivos são moralmente aceitos, os meios os melhores e
as intenções louváveis, mas os corpos começam a aparecer nas UPPs. O prefeito
chora em Copacabana quando o Rio é escolhido para sediar o grande evento
esportivo e o trator começa a derrubar casas. A presidente aprova a usina
hidroelétrica e as árvores e índios começam a perder seus espíritos e raízes.
Há três anos, depois do primeiro
turno das eleições nas quais o PT apoiou a candidatura de Sérgio Cabral ao
governo do Rio de Janeiro, Lula discursando na inauguração de uma plataforma de
petróleo da Petrobras em Angra disse:
“O Rio de Janeiro não aparece
mais nas primeiras páginas dos jornais pela bandidagem. O governo fez da favela
do Rio um lugar de paz. Antes, o povo tinha medo da polícia, que só subia para
bater. Agora a polícia bate em quem tem que bater, protege o cidadão, leva
cultura, educação e decência”.
Três anos depois um pedreiro sai
de um boteco na Rocinha “pacificada”. É abordado pela polícia militar e levado
para averiguações na sede da UPP. Sua cabeça é coberta por um saco plástico, é
espancado e toma choques. Epilético, não resiste e morre. Os policiais
desaparecem com o corpo. Dez policiais são indiciados pelo crime, o governador
Cabral e o secretário de segurança Beltrame não estão entre eles. O Estado no
seu reino de metafísico está protegido pela muralha da universalidade abstrata,
no cotidiano da sociedade civil burguesa onde se estraçalham as
particularidades pode-se sempre acusar o erro humano, o desvio de conduta, a
corrupção. O Estado então promove seu ritual de encobrimento: vai ser aberta
uma sindicância e serão feitas averiguações. Evidente que os dez acusados ou
suspeitos não serão sequestrados, suas cabeças enviadas em sacos plásticos e
seus corpos desaparecidos.
Na abstração dos direitos somos
todos somos iguais. Na particularidade viva da sociedade burguesa somos pobres,
pretos, favelados, facilmente identificados para receber práticas
discriminatórias em nome da ordem a ser mantida. Ordem e tranquilidade. Na
ordem garantida os negócios e acordos são garantidos sem sobressaltos, a
acumulação de capitais encontra os meios de se reproduzir com taxas adequadas,
o Estado é saneado financeiramente destruindo as políticas públicas e
garantindo a transferência do fundo público para a prioridade privatista. A
ordem garante que a exploração que fundamenta nossa sociabilidade se dê com
tranquilidade.
No entanto as contradições desta
ordem, por vezes, explodem em rebeldia e enfrentamentos. Não apenas como nos
protestos que presenciamos desde junho, mas também por pequenas explosões e
caóticas resistências que vão desde o enlouquecimento e a miserabilidade que se
torna incomodamente visível, até o crime.
Professores, universitários do
ensino público federal ou da rede estadual e municipal de ensino, que resolvem
não aceitar a imposição de um plano de carreira; jovens que se recusam a pagar
o aumento das passagens, mulheres exibindo seus seios e jovens se beijando,
escudos, vinagres e máscaras; são apenas a expressão mais contundente e parcial
da contradição (esperamos ainda que despertem metalúrgicos, petroleiros e
outros). Além destas manifestações já estavam lá no corpo doente da cidade, os
bolsões de miséria, as favelas, as famílias destruídas, os jovens sem futuro
acendendo seus isqueiros para iluminar um segundo de alegria.
O Estado é a trincheira de
proteção estratégica da ordem da propriedade privada e da acumulação privada da
riqueza socialmente produzida. No centro desta zona estratégica está a classe
dominante, a grande burguesia monopolista dona de fábricas, bancos, empresas de
transporte, controlando o comércio interno e externo, o agronegócio, as
indústrias farmacêuticas e das empresas de saúde, etc. São cerca de 124 pessoas
que controlam mais de 12% do PIB do Brasil, os 10% mais ricos que acumulam
72,4% de toda a riqueza produzida. Em seu entorno estão seus funcionários, um
exército de burocratas, políticos, técnicos e serviçais de toda ordem que
erguem em defesa deste círculo estratégico de uma minoria plutocrata as esferas
do poder público e seus aparatos privados de hegemonia.
Na forma de um terceiro círculo
de defesa, mas que se articula a este segundo, está um exército de funcionários
que executam o trabalho (limpo ou sujo) de manutenção da ordem. Como extrato
baixo da burocracia Estatal não compartilha dos altos salários e benesses do
segundo círculo, mas isso não os faz diretamente membros da classe trabalhadora
por receberem baixos salários e terem que trabalhar e viver nas condições de
nossa classe. O ato de um policial militar que estapeia o rosto de um
trabalhador na favela é o ato pelo qual ele abdica de sua condição de classe,
se alia aos nossos algozes e se torna nosso inimigo.
Contraditoriamente, o ato pelo
qual uma corporação, como os bombeiros, se levanta em greve por condições de
trabalho e salários, é o ato pelo qual rompe com seus chefes e busca aliar-se a
sua classe para constituí-la enquanto classe. “O bombeiro é meu amigo, mexeu
com ele mexeu comigo”, gritam os trabalhadores que lhes abrem os braços com a
infinita solidariedade que constitui a liga sólida que nos faz classe.
Um taxista pega um grupo de
professores e pergunta se eles estavam na manifestação contra o Prefeito
Eduardo Paes e seus planos de carreira. Diante da resposta positiva o taxista
diz: “então não vou cobrar esta corrida, fica como contribuição para a luta de
vocês”.
O Estado precisa reprimir e criminalizar
toda e qualquer dissidência pelo simples motivo de que por qualquer pequena
rachadura da ordem pode brotar a imensa torrente que nos unirá contra a ordem
que o Estado garante. Ainda que muitos de nós ainda não saibamos disso, o
Estado e a classe que ele representa sabem.
A ridícula minoria de
exploradores e os círculos de defesa que se formam em torno deles, está cercado
por nós, a maioria. Primeiro pelos trabalhadores recrutados pelo capital para
valorizar o valor, depois um enorme contingente de trabalhadores que garantem
as condições indiretas de produção e reprodução da força de trabalho e logo em
seguida pela massa de uma superpopulação relativa cujo papel é pressionar os
salários para baixo, para manter a saúde da acumulação de capitais. Por isso,
eles estão armados até os dentes, por isso tem tanto medo de nós.
Fica evidente o motivo pelo qual
a classe dominante precisa do Estado, a grande pergunta é: para que nós
precisamos do Estado?
A justificativa ideológica quer
nos fazer crer que a complexidade da sociedade contemporânea exige um grau de
planejamento, técnica, procedimentos sem os quais seria impossível a vida em
sociedade e mergulharíamos no caos da guerra de todos contra todos. Ora, como
diria Einstein: defina caos! Estamos mergulhados na guerra da burguesia
monopolista e imperialista contra todos! Brecht já dizia em seus poemas sobre a
dificuldade de governar: “Todos os dias os ministros dizem ao povo como é
difícil governar. Sem os ministros, o trigo cresceria para baixo em vez de crescer
para cima. Nem um pedaço de carvão sairia das minas.”
Quem somos nós e por que
precisamos deles? Somos trabalhadores, sabemos plantar alimentos, construir
casas, fazer roupas e meios de transporte, calçados e todos os tipos de
ferramentas, ensinamos e cuidamos de nossa saúde, e como não somos de ferro
fazemos músicas e poemas, trazemos a vida para telas e palcos, damos forma ao
mármore e ao bronze, nos olhamos e nos apaixonamos e temos filhos tão humanos,
tão humanos que carregam a vã esperança de que podemos ser melhores.
Mas isso é utópico, a natureza
humana… a natureza humana! Nos gritam os ideólogos. Temos contradições, é
verdade. Nós brigamos, divergimos, conhecemos a maldade e os canalhas de toda a
espécie. A ordem da propriedade e da mercadoria e o poder que inevitavelmente a
ela se acopla transformam nossas contradições em contradições inconciliáveis e
criam formas de poder que consolidam uma ordem de exploração. Não queremos
abolir as contradições, queremos desvesti-las da forma histórica da propriedade
e vivê-las humanamente.
Quando tivermos superado esta
ordem e um trabalhador hipoteticamente encontrar em um banco de praça o Cabral
e o Paes, despidos de toda a autoridade de seus cargos, nus de todo poder com o
qual a ordem do capital os ungiu, vai colocar a mão no ombro deles e dizer:
“vocês são uns bostas, canalhas mesmo, minha vontade é chamar aquele meu amigo
black bloc e te encher de porrada… mas eles não batem em gente, só em coisas. O
lanche é às 16 horas e a festa às 20 horas lá na praia, passa lá para a gente
vaiar vocês… pelos maus tempos”.
É lógico que eles e seus patrões
verdadeiros não vão permitir que isso aconteça, por isso temos que nos
constituir como um poder tão grande e definitivo que ninguém possa questionar.
Destruir o Estado da Burguesia e construir o Estado dos Trabalhadores que
prepare as condições para superar as contradições que exigem um poder separado
da sociedade até que consigamos eliminar as classes e constituir uma sociedade
sem Estado, autogovernada.
Não precisamos deles (podemos
começar fechando o Senado que não vai fazer falta). Não é possível que não
possamos fazer melhor que esta porra que está aí. Vai do nosso jeito… nosso
porto, por exemplo, pode não ser um “porto maravilha”, porque maravilha para
eles é esta cidade horrorosa, desigual e injusta cheia de prédios enormes de
cimento e vidro e vazios por dentro à noite, cemitérios com seus túmulos sem
ninguém que os habite.
Nosso porto teria casas, algumas
modestas com o reboco por consertar e a pintura gasta, com janelas abertas e
dentro delas pessoas que as fazem humanas. De lá sairiam crianças alegres,
saudáveis e alimentadas, indo para as escolas, parques e museus, e nós
sairíamos para o trabalho para fazer todas as coisas que sabemos e a noite
voltaríamos para nossas casas e cada um trabalharia de acordo com sua capacidade
e receberia de acordo com sua necessidade.
Nós chamamos isso de comunismo,
porque somos comunistas. Chamem do que quiser: socialismo, sociedade
libertária, anarquismo, plena democracia… não importa, não somos fetichistas
das palavras. Queremos apenas, e conquistamos este direito, participar da luta
por ela e em sua construção. Afinal, é isso que nós comunistas fazemos… a mais
de 160 anos.
Até quando o mundo
será governado pelos tiranos?
Até quando nos
oprimirão com suas mãos cobertas de sangue?
Até quando se
lançarão povos contra povos numa terrível matança?
Até quando haveremos
de suportá-los?
Bertolt Brecht
Mauro Luis Iasi é um dos colaboradores do livro de intervenção
Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil,
organizado pela Boitempo. Com textos de David Harvey, Slavoj Žižek, Mike Davis,
Ruy Braga, Ermínia Maricato entre outros. Confira, abaixo, o debate de
lançamento do livro no Rio de Janeiro, com os autores Carlos Vainer, Mauro
Iasi, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira:
http://blogdaboitempo.com.br/2013/10/16/o-estado-e-a-violencia/
fonte: site PCB
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