Diario Liberdade-Estudioso dos jovens mascarados,
Francis Dupuis-Déri defende que a tática é uma reação à violência policial, e
nasceu na Alemanha de 1980 da convicção de que é preciso ir além das passeatas.
“É preciso perturbar e reagir
quando a polícia ataca o povo.” Essa é uma das explicações que o cientista
político Francis Dupuis-Déri elaborou sobre os black blocs durante os mais de
dez anos em que estuda a tática dos jovens mascarados que se infiltram nas
manifestações populares para atacar símbolos do capitalismo. “Apenas uma ínfima
parcela da elite controla os negócios globais. Existe um sério déficit
democrático no mundo. As pessoas estão revoltadas e consideram que já não basta
se manifestar pacificamente.”
Professor da Universidade de
Québec em Montreal (Uqam), no Canadá, Dupuis-Déri conversou com a RBA por e-mail. Respondeu a perguntas
sobre a origem histórica dos black blocs, na Alemanha Ocidental, nos anos 1980,
e sobre como tem sido a repressão à tática em outros lugares do mundo. Na
entrevista, ficamos sabendo que os governos de São Paulo e Rio de Janeiro não
foram os únicos a ferir as liberdades civis na tentativa de reprimir o
descontentamento dos black blocs. “Os conflitos políticos se polarizam e o
Estado age de maneira burra, através da repressão policial e da detenção dos
dissidentes.”
Dupuis-Déri é autor de Les Black
Blocs, já na terceira edição, e Who's Afraid of the Black Blocs? Anarchy in
Action Around the World, que pode ser traduzido como Quem tem medo dos black
blocs? Anarquia em ação ao redor do mundo. Embora à distância, tem olhado com
atenção para as recentes movimentações dos black blocs no Brasil e no Egito. E
não parece surpreso com a multiplicação da tática ao redor do mundo. “O
blackbloc é facilmente reproduzível”, diz, ressaltando um dos problemas do
grupo: a infiltração. “Na Alemanha, neonazistas organizam black blocs dentro de
suas próprias manifestações.”
O que é o black bloc? Um movimento? Uma tática? Uma performance?
Black bloc é simplesmente uma
tática, uma maneira de se organizar dentro de uma manifestação. Consiste em se
vestir de preto para garantir um certo anonimato. Pelo que conheço, a maioria
dos black blocs desfilam com calma nas manifestações. A simples presença deles
forma, de certa maneira, uma bandeira preta, símbolo do anarquismo. Vale
lembrar que os sindicatos fazem coisa semelhante quando se manifestam: eles se
agrupam atrás de faixas, com bandeiras, para que todos os seus membros andem
juntos. Nesse sentido, com o black bloc é a mesma coisa.
Quando, como, onde e por que surgiram os black blocs?
O black bloc como forma de ação –
ou seja estar vestido de preto e mascarado – surgiu na Alemanha Ocidental por
volta de 1980. A tática apareceu dentro do movimento “Autonomen”, que
organizava centenas de ocupações políticas e lutava contra a energia nuclear, a
guerra e os neonazistas. Os black blocs alemães defendiam as ocupações de
prédios contra as expulsões da polícia e se confrontavam com os neonazistas nas
ruas. A estratégia black bloc se propagou no Ocidente através da música
anarcopunk e de grupos antirracismo. A ampla cobertura midiática das
manifestações antiglobalização de Seattle, nos Estados Unidos, em 1999, também
contribuiu para a difusão da tática, assim como a internet o faz hoje. A
questão, aqui, é que o black bloc é facilmente reproduzível.
O que justifica o surgimento dos black blocs em países da Europa e nos
Estados Unidos, onde as necessidades básicas da maioria dos cidadãos, ao contrário
do que ocorre no Brasil, já estão atendidas?
No Ocidente, os black blocs se
mobilizam há pelo menos 15 anos durante grandes encontros do G8, G20, FMI etc.
E dentro do chamado movimento altermundialista (famoso pelo slogan “outro mundo
é possível”, cunhado pelo Fórum Social Mundial). Muitos black blocs consideram
que a ideologia neoliberal e o capitalismo são responsáveis pelas
desigualdades, injustiças e a destruição do planeta. Além disso, essas grandes
cúpulas internacionais demonstram que apenas uma ínfima parcela da elite
controla os negócios globais e que, consequentemente, existe um sério déficit
democrático no mundo. Por fim, a repressão aos movimentos sociais no Ocidente
cresceu nos últimos 15 anos. Em países como a Grécia, a situação econômica é
catastrófica. Por essas e outras razões, as pessoas estão revoltadas e
consideram que já não basta se manifestar pacificamente: é preciso perturbar e
reagir quando a polícia ataca o povo.
Que ideologia norteia a atuação dos black blocs?
Não existe “um” black bloc, mas
sim “os” black blocs, que são distintos em cada manifestação. De maneira geral,
quem mais participa desses grupos são anarquistas, anticapitalistas, feministas
radicais e ecologistas. Segundo minhas pesquisas, os black blocs são geralmente
compostos por indivíduos com uma forte consciência política.
Os black blocs são de esquerda ou de direita? É possível defini-los
nestes termos?
Principalmente de esquerda e
sobretudo de extrema-esquerda. Mas, como o black bloc é reconhecido principalmente
pela aparência, pela roupa preta, fica fácil imitá-lo. Já há alguns anos, na
Alemanha, país onde surgiu a tática, neonazistas organizam black blocs dentro
de suas próprias manifestações. É uma apropriação, uma deturpação.
É possível fazer algum paralelo entre os black blocs e o ludismo do
século 19?
De certa maneira, podemos sim
fazer um paralelo. Muitos pensam que os ludistas, que destruíam as maquinas
têxteis na Inglaterra no século 19, eram apenas românticos contrários ao
progresso. Mas, no fundo, eles defendiam um modo de vida comunitário contra o
desenvolvimento tecnológico e econômico que mais tarde viria a perturbar
profundamente suas vidas. Tudo em nome do lucro de alguns poucos privilegiados.
Certamente, essa ideia existe dentro dos black blocs. Há muitos ecologistas
radicais que aderem à tática, e suas ações diretas são motivadas pela convicção
de que o capitalismo, o desenvolvimento desmesurado e o consumismo vão destruir
a vida no planeta.
Por que os black blocs adotaram o
vandalismo como estratégia?
Muitos movimentos sociais contam
com grupos mais combativos. Isso se aplica, por exemplo, para os movimentos
indígenas e alguns grupos sindicais. É importante lembrar que os black blocs
não são os únicos que procuram destruir bancos. Durante a crise de 2001, na
Argentina, lembro de ter visto mulheres da classe média, de aproximadamente 50
anos, atacarem vitrines de bancos com martelos, porque elas acabavam de perder
todas suas economias. Era uma maneira significativa de expressar sua revolta.
Ao longo dos séculos, muitas vezes, pessoas arruinadas por dívidas pesadas
queimaram bancos e tribunais – onde se mantinha o registro das dívidas. Foi o
que aconteceu nos Estados Unidos depois da independência. Como outras pessoas,
os black blocs pensam que é preciso mais que manifestações calmas e pacíficas
para realmente perturbar a ordem das coisas e expressar uma revolta legítima
contra instituições que destroem suas vidas. Os bancos são uma delas.
Em que sentido atentar contra símbolos do capitalismo (bancos, lojas de
automóveis etc.) pode ajudar a superar a ordem capitalista?
Algumas pessoas se manifestam com
um cartaz “Foda-se Capitalismo!”. Isso não detém o capitalismo, mas é uma
mensagem, uma crítica pública. A ação do black bloc é a mesma coisa, só que
mais radical, mais combativa. O alvo é a mensagem. Os críticos dos black blocs
frequentemente relatam danos e quebradeiras contra pequenos comércios e usam
esse fato para qualificar a tática como violência gratuita e apolítica. Ora,
segundo minhas pesquisas, 99% dos alvos têm um significado claramente político:
bancos, grandes empresas, grupos privados de mídia, edifícios do governo e da
polícia. Mesmo quando um pequeno comercio é alvo, é preciso ser paciente e
buscar alguma explicação. Frequentemente, nas semanas seguintes, ficamos
sabendo que, por exemplo, era uma represália contra comerciantes que
colaboraram com a polícia durante uma manifestação, ou pequenos empresários que
costumam a maltratar seus funcionários.
No Brasil, os black blocs apareceram com mais força durante as
manifestações de junho. Tanto à esquerda quanto à direita, poucas são as vozes
que contestam publicamente essa desumanização dos black blocs. Esse processo de
condenação social também foi visto em outros países onde os black blocs atuam
há mais tempo? Pode citar alguns exemplos?
No Ocidente, a repressão da
polícia contra movimentos sociais progressistas vem crescendo nos últimos 15
anos. Durante a greve estudantil de 2012, no Canadá, mais de 3.500 pessoas
foram presas apenas na cidade de Québec. (Québec tem apenas 7 milhões de habitantes
e a greve durou 10 meses) A maioria das prisões ocorreu durante manifestações
pacíficas. Ao todo, ao longo de toda a greve, apenas algumas vitrines foram
quebradas. Nada que justifique tamanha repressão.
Na cidade de Montreal e na cidade
de Québec, a legislação municipal também foi modificada para proibir máscaras e
obrigar os manifestantes a fornecer antecipadamente o trajeto do protesto. Um
militante fantasiado de panda foi preso e teve a cabeça de sua fantasia
arrancada. Em um dos meus livros, À qui la rue? Répression policière et
mouvements sociaux (A quem pertence a rua? Repressão policial e movimentos
sociais, em tradução livre), contabilizei mais de 10 mil detenções contra o
movimento altermundialista desde as manifestações de Seattle, nos Estados
Unidos, em 1999. As leis antiterroristas editadas após 11 de setembro de 2001
são usadas para criminalizar todo tipo de dissidência. Os conflitos políticos
se polarizam e o Estado age de maneira burra, através da repressão policial e
da detenção dos dissidentes.
Como a esquerda (movimentos sociais, partidos políticos e intelectuais)
costuma reagir à aparição dos black blocs?
Os black blocs parecem não ter
muitos amigos. Muitas vezes, os porta-vozes das organizações progressistas,
como sindicatos, denunciam os black blocs, dizendo que eles se “infiltram” em
“suas” manifestações e que eles só querem “quebrar tudo”. Pessoas de esquerda
justificam dessa maneira a repressão e a criminalização da dissidência.
Denunciando a “violência”, eles esperem ganhar uma imagem respeitável. Vimos
isso em todas as manifestações do movimento altermundialista, desde Seattle, em
1999, até o encontro do G20 em Toronto, no Canadá, em 2010. O problema é que
essas forças progressistas praticamente não acumulam ganhos nos últimos 15
anos. Pior, é a direita quem está na ofensiva em todas as partes, e a esquerda
recua – pelo menos na Europa e nos Estados Unidos.
A esquerda mais institucional e
“respeitável” frequentemente precisa da turbulência e da combatividade da
extrema-esquerda para suas manobras no campo político. Na Itália, um grupo
contra a construção de um trem de alta velocidade (Movimento No TAV) aplaudiu
em Turim um porta-voz que declarou “somos todos black blocs”. No Brasil, o
Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ)
declarou recentemente apoio e solidariedade aos black blocs. Vemos regularmente
testemunhos de manifestantes que não participam dos black blocs, mas que
concordam com a tática e inclusive já foram protegidos por eles dos ataques da
polícia. Vimos isso em Seattle e no Québec durante a greve de 2012, assim como
em outros lugares. Muitos sabem também que os black blocs ilustram um elemento
importante dos movimentos de contestação. Para alguns, os black blocs são uma
“imagem do futuro”.
Tradução: Delphine Lacroix
Fonte: Diario Liberdade e RBA
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