Miguel Urbano Rodrigues
A situação na Europa neste início
do segundo milénio é muito diferente da existente na Rússia de 1917. Mas há
lições da História que permanecem actuais. Em l967 Álvaro Cunhal pôs enfase
numa delas ao recordar que sendo o Estado burguês «um instrumento de dominação
de uma classe sobre outras classes», será preciso destrui-lo e substitui-lo por
um Estado diferente, quando o povo, sem data no calendário, conquistar o poder.
Num texto de quatro dezenas de páginas,
publicado em 1967 no Militante*, Álvaro Cunhal define a Questão do Estado como
a Questão Central de Cada Revolução.
Nesse ensaio retoma uma tese
leninista fundamental.
No final do seculo XIX, o
social-democrata alemão Edward Bernstein sustentou que era possível derrotar a
burguesia e transformar radicalmente a sociedade num quadro institucional (o
bismarckiano) sem necessidade de uma revolução. Para Bernstein «o movimento
(leia-se reformas) é quase tudo». Essa posição, denunciada como oportunista e
capituladora por Rosa Luxemburgo e Lenin, assinalou o início de uma rutura com
o marxismo de partidos e organizações que até então defendiam a tomada do poder
pela classe operária pela via revolucionária.
A destruição do capitalismo na
Rússia após a Revolução de Outubro, concebida e dirigida pelo Partido
Bolchevique, não pôs fim à polémica em torno de uma questão fulcral: é possível
construir o socialismo num país utilizando as instituições criadas pela
burguesia para atingir os seus objetivos?
O golpe de estado de Pinochet
(ideado nos EUA) como desfecho sangrento dos Mil Dias da Unidade Popular
chilena foi uma resposta da História àqueles que insistiam em defender a «via
pacífica» para a construção do socialismo utilizando o estado burguês.
Transcorrido um quarto de século,
as sucessivas vitórias eleitorais de Hugo Chávez na Venezuela reatualizaram o
debate sobre o tema. O falecimento prematuro do líder da Revolução bolivariana
não somente, porem, confirmou que a sua evolução foi desde o início decisivamente
condicionada pelo fator subjetivo como desaconselha previsões sobre o rumo do
processo.
Álvaro Cunhal lembra no seu
trabalho que Lenin insistia que, conquistado o poder, o proletariado não se
pode limitar a tomar conta do aparelho do estado burguês, mas tem de destrui-lo
e substitui-lo por um novo Estado.
É útil recordar que ao regressar
à Rússia após a Revolução de Fevereiro, Lenin se pronunciou contra qualquer
forma de colaboração com o governo do príncipe Lvov. Ao exigir nas Teses de
Abril todo o Poder para os Sovietes, o grande revolucionário, num quadro de
dualidade de poderes, imprimiu uma guinada na estratégia do Partido. Meses
depois, ao escrever O Estado e a Revolução, aprofundou a crítica a ilusões de
cooperação com a burguesia (o governo de Kerenski), retomando ensinamentos de
Marx.
Obviamente que a situação na
Europa neste início do segundo milénio é muito diferente da existente na Rússia
de 1917. Mas há lições da História que permanecem atuais. Álvaro Cunhal pôs
ênfase numa delas em l967 ao recordar que sendo o Estado burguês «um
instrumento de dominação de uma classe sobre outras classes», será preciso
destruí-lo e substitui-lo por um Estado diferente, quando o povo, sem data no
calendário, conquistar o poder.
Não se desatualizou o lúcido
ensaio do saudoso secretário-geral do PCP.
Transcorrido quase meio seculo,
numa Europa dominada pelo grande capital, quando muitos partidos comunistas se
social-democratizaram, persistem em forças e organizações progressistas ilusões
sobre a chamada democracia representativa. Condenam o imperialismo e o
capitalismo, mas, perante a inexistência a medio prazo de condições subjetivas
para o surgimento de situações pré-revolucionárias, adotam estratégias
reformistas, integradas no sistema. Sem o reconhecerem, atuam como se através
das instituições pudessem um dia chegar ao governo. O Partido da Esquerda
Europeia e partidos como o Syriza grego são na prática inofensivos para o
Estado burguês e servem os seus objetivos. Praticam uma forma de oportunismo
que se manifesta inclusive na linguagem política dos dirigentes. Admitir por
exemplo que as ditaduras da burguesia europeias de fachada democrática são
formas de democracia política é um grave erro.
Obviamente que os partidos que se
batem pelo socialismo devem participar nos parlamentos e lutar neles por
reformas revolucionarias. Já Lenine atribuía importância a esse tipo de
intervenção. Mas sem ilusões. A sua função deve ser o combate ao sistema, sem a
perspetiva de eventual cooperação com partidos burgueses no parlamento e fora
dele. As reformas de conteúdo revolucionário são, aliás, inviáveis no âmbito de
instituições controladas pelo capital.
MARX E A QUESTÃO DO ESTADO
Em entrevista recente a uma web
basca, Boltxe (in La Haine,18.5.14), comentando a crise estrutural do
capitalismo, chamei a atenção para o explosivo renascimento do marxismo.
Contrariando profecias dos intelectuais anticomunistas, multiplicam-se hoje, na
Europa e na América, os Congressos e seminários sobre a obra e o pensamento de
Karl Marx. Em França - um exemplo - o curso sobre Marx na Sorbonne, promovido
pelo filósofo e historiador Jean Salem é um êxito, acompanhado na Internet por
mais de 30 000 pessoas.
Esse interesse das novas gerações
pelo marxismo confirma a sua vitalidade como ideologia criadora e dinâmica, tal
como a concebeu Marx - um instrumento revolucionário indispensável à
compreensão do mundo atual e à sua transformação através de lutas contra o
capitalismo do seculo XXI, diferente daquele que inspirou o autor de O Capital,
mas para o qual, hoje como ontem, a exploração do homem é condição da sua
sobrevivência. Sendo o capitalismo pela sua essência desumano, não vejo para
ele outra alternativa que não seja o socialismo.
Como comunista estou consciente
de que a palavra socialismo é suscitável de muitas interpretações. As lições da
derrota da União Soviética e a transformação da Rússia num pais capitalista
trazem-nos, aliás, a certeza de que o desaparecimento do capitalismo não dará
origem a um modelo único de socialismo.
Nos últimos anos surgiram obras
muito importantes de filósofos marxistas revolucionários. Citarei entre outros
cujos trabalhos merecem estudo atento, o italiano Domenico Losurdo e o francês
Georges Labica.
Ambos, sublinho, coincidem com
Marx e Álvaro Cunhal na conclusão de que é indispensável, quando um partido
marxista-leninista toma o poder, destruir pela raiz o Estado burgues. O
desfecho da experiência chilena - nunca é demais recordar essa evidência –
demonstrou com clareza meridiana a impossibilidade de se utilizar com êxito o
aparelho de Estado criado pela burguesia para impor um sistema incompatível com
os objetivos desta. O rumo dos acontecimentos na Venezuela bolivariana e na
Bolívia também está a confirmar que a chamada «via pacifica para o socialismo»
é uma tese romântica.
A EXTINÇÃO DO ESTADO
É porem ilusório e ingénuo crer
que por si só a destruição do aparelho do Estado burguês resolve o problema da
construção, função e natureza do Estado socialista. Lenin, logo após a vitória
da Revolução de Outubro, alertou o Partido para os tremendos desafios da
transição no futuro imediato.
Losurdo coloca concretamente uma
questão teórica fundamental sobre a transição do capitalismo para uma sociedade
socialista humanizada, sem exploradores nem explorados. Em Marx não se encontra
resposta a essa questão crucial.
Losurdo não critica diretamente a
tese marxista da extinção gradual do Estado. Mas recorda, com alguma
frustração, as respostas que a História deu ao tema em sociedades nas quais
partidos comunistas, tomado o poder, iniciaram a construção do socialismo. O
Estado burguês, destruído, foi neles substituído, num contexto de luta de
classes exacerbada, por um Estado de transição. A meta, distante, era o
comunismo após a construção do socialismo.
Mas em nenhuma dessas
experiências revolucionárias o novo Estado edificado pelo Partido sobre as
ruinas do Estado burgues preexistente se encaminhou com o tempo para a
extinção, como previa Marx. Ocorreu o contrário. O Estado, por motivos muito
diferentes, em circunstâncias históricas dissemelhantes, fortaleceu-se
continuamente. Isso ocorreu concretamente na União Soviética, em Cuba, no
Vietnam. Não creio que os erros e desvios cometidos pelos partidos comunistas
desses três países - e foram muitos e graves - possam ter sido a causa
determinante da não redução do papel e da dimensão do Estado socialista.
Assistiu-se, pelo contrário, a uma hipertrofia do Estado.
A explicação desse fenómeno
político, social e económico, algo não previsto por Marx, encontramo-la –
admito - no homem, na resistência do ser humano a transformar-se, mesmo em
benefício próprio.
A humanidade realizou conquistas
prodigiosas no domínio da ciência e da técnica. A vida é hoje totalmente
diferente do que era na Atenas de Péricles. Mas o homem do Século XXI não é
melhor nem mais inteligente do que eram - apenas dois exemplos - Platão e
Aristóteles. O homo sapiens contemporâneo, com as suas virtudes, vícios e
aspirações, não difere muito na sua capacidade de amar, sentir e lutar do
ateniense do seculo V A.C., ou do cidadão de Jerusalém da época de Jesus.
O homem novo, por ora, continua a
ser uma aspiração, um ser mítico, utópico. O aparecimento rapidíssimo na Rússia
de Ieltsin de milhões de homens antigos, com todos os estigmas do capitalismo,
requer reflexão.
A transição do capitalismo para o
socialismo será muito mais lenta do que Karl Marx previu.
Na monstruosa engrenagem a
serviço do capital que é hoje a União Europeia a probabilidade de ruturas
revolucionarias nos países periféricos, imperializados, é mínima na atual
conjuntura, mesmo naqueles onde existem condições objetivas favoráveis.
Essa convicção não implica que os
comunistas baixem os braços na luta contra o capitalismo.
A opção comunista exige uma
disponibilidade permanente para o combate contra o capitalismo como inimigo da
humanidade.
A advertência de Rosa Luxemburgo
sobre a antinomia socialismo ou barbárie não perdeu atualidade. Está nas mãos
da Humanidade optar pela sua continuidade ou extinção.
As revoluções não são
pré-datadas. Tive o privilégio de ser testemunha de algumas e participei
modestamente na luminosa e breve saga do 25 de Abril e na luta pela defesa das
suas conquistas.
Sei que a minha vida útil se
aproxima do fim. Mas o meu compromisso como comunista não é com o calendário e
sim com os princípios e valores pelos quais me bati – o ideário que conferiu
sentido à minha aventura existencial.
Vejo como ingénua a esperança de
que as revoluções futuras sejam obra dos movimentos sociais. O espontaneismo
não faz história profunda. A luta de classes continua a ser o motor da
História. E é ao partido revolucionário marxista-leninista de novo tipo que
cabe liderá-la como vanguarda.
No momento não estão criadas as
condições subjetivas para revoluções socialistas no futuro imediato. Mas o
capitalismo não tem soluções para salvar da destruição o seu monstruoso projeto
de dominação universal. Está condenado a desaparecer. Entrou já num lento
processo de implosão.
A maré da luta de classes sobe. E
a convergência de muitas lutas em muitos países será fatal para o capitalismo.
Serpa e Vila Nova de Gaia, julho
de 2014
*Editado em brochura em 1967 e
reeditado em 2007, com um prefácio de José Casanova
Fonte: PCB
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