Da mesma forma que é democrática a livre manifestação popular em defesa do impeachment de Dilma Rousseff, também é democrática a livre manifestação popular que considera um golpe de Estado a forma como é conduzido o processo de cassação.
Grupos e partidos contrários ao governo, que discordaram do resultado das eleições de 2014, foram às ruas contesta-las e demonstrar sua insatisfação, o que foi fundamental para colocar Dilma e o PT a um passo do cadafalso (bem, na verdade, eles mesmo caminharam para a forca por conta dos seus próprios erros). Posso discordar dos métodos e narrativas desses grupos e partidos mas, até aí, faz parte do jogo.
Portanto, soa hipócrita, para
dizer o mínimo, quando representantes do PSDB e do DEM entram com representações
junto ao Ministério Público Federal pedindo a investigação do coordenador do
Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) Guilherme Boulos sobre declarações
que tem dado em eventos.
Dizem que ele incita ao crime e
forma milícia privada por afirmar o óbvio – que parte da sociedade vai resistir
nas ruas se o impeachment ocorrer sem estar baseado em um claro crime de
responsabilidade cometido pela presidente.
Lembrando que incompetência no
cargo, falta de capacidade política e dificuldades de se expressar em público
não significam crime de responsabilidade.
Por outro lado, resistência
significa utilizar os meios possíveis e ao alcance de cada um para demonstrar
sua insatisfação. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp)
resiste ao governo federal gastando milhões de reais para ocupar, na forma de
anúncios, espaços nobres nos principais jornais e portais a fim de clamar pelo
impeachment – além de produzir e distribuir um exército de patos de borracha
amarelos pelo país.
A própria oposição resiste
travando a aprovação de projetos de lei que visam a retomar o crescimento
econômico (projetos com as quais ela concorda, aliás), ocupando o espaço com
discursos pró-impeachment, para desgastar o governo federal e forçar sua saída.
E prometem fazer o mesmo caso o impeachment não passe.
Daí quando trabalhadores e
movimentos sociais prometem resistência, cruzando os braços em greves e
ocupando ruas, avenidas e outros espaços, a ação vira caso de polícia? Aonde o
pessoal acha que está? Ou onde gostaria que estivéssemos? No Brasil do final do
século 19 ou em plena ditadura civil-militar?
A criminalização da resistência
de apenas um dos lados dessa disputa mostra o quanto atores de nosso sistema
político é incapaz de entender o que é, de fato, uma democracia. Chamar de
chantagem toda forma de protesto com a qual não concordamos é, no mínimo,
infantil.
A oposição não vai admitir, mas a quantidade de pessoas
que têm ido às ruas para criticar a forma como está sendo conduzido o processo
de impeachment – atenção, não confundir com ir às ruas para apoiar esse governo
– foi maior que a esperada. À frente de muitas delas, está o MTST e a Frente
Povo sem Medo, que se mantém bastante críticos ao Palácio do Planalto.
A partir daí, a narrativa para a
criminalização de movimentos sociais tem sido anabolizada na mídia, nas redes
sociais, nos espaços políticos. Narrativa que quer inverter os sentidos das
palavras e transformar resistência popular em ameaça à democracia e à
governabilidade.
Guilherme Boulos é liderança do principal
movimento social de massa deste país em termos de centralidade da pauta,
capacidade de mobilização e visão de atuação hoje. Um movimento com uma agenda
antiga, mas com uma equipe que sabe se comunicar e influenciar a disputa
simbólica da narrativa, pela mídia, pelas redes sociais.
E vem exatamente do
posicionamento crítico adotado contra a atual administração federal o respeito
de vários setores da esquerda para com o movimento e com Boulos. Esse respeito
e essa capacidade de mobilização, que consegue colocar dezenas de milhares de
militantes nas ruas quando preciso, assusta muita gente. Que prefere ver ele
preso do que articulando com outros movimentos ou em cima de um caminhão de
som.
O pedido de investigação criminal
de Guilherme Boulos é uma amostra do que acontecerá com parte da esquerda
brasileira se o macarthismo à brasileira se instalar como ação sistemática de
limpeza ideológica. Já estamos vendo, aqui e ali, a perseguição a quem usa
roupas vermelhas e a agressão em espaços públicos contra quem defende
determinado ponto de vista. Até o juramento de Hipócrates foi rasgado por
médicos que acham normal não prestar atendimento a alguém que não compartilha
da mesma opinião política que eles.
Daqui para a caça nas ruas,
escolas e empresas é um pulo.
Apesar de conquistas sociais
obtidas na última década, o governo não atendeu às pautas históricas propostas
pelos movimentos sociais – o que, do meu ponto de vista, não seria nenhuma
“revolução'', mas melhoraria a vida de milhões de brasileiros que se mantêm
excluídos. Pelo contrário, em nome da “governabilidade'' fez alianças espúrias,
apoiando forças econômicas e políticas que eram contrárias a esses interesses
populares, ignorando o suporte oferecido por esses mesmos movimentos para um
mandato que significasse uma mudança de paradigma.
E nada indica que, se sobreviver
à convulsão, irá fazer a “guinada à esquerda'', mítico desejo da militância,
que passa frio no barraco de lona na beira da rodovia, que convive com ratos em
prédios ocupados em grandes cidades, que sente medo de ser despejada de sua
terra tradicional, que vive as condições de trabalho precarizadas em nome do
progresso.
Mas todos os movimentos sociais
sabem o que é serem considerados criminosos simplesmente por lutarem pelos
direitos que lhes são garantidos pela Constituição. Sabem o que é levar cacete
por representar o que está em desacordo com a visão hegemônica de “progresso''
e crescimento econômico, seja no campo ou na cidade. E ainda guardam na memória
as cicatrizes deixadas pelos anos de governo Fernando Henrique Cardoso, temendo
que voltem a ser caçados dependendo de quem assuma o poder ou do clima político
do país.
Você pode não gostar de Guilherme
Boulos. Mas, se preza pela liberdade, deveria repudiar a sua criminalização e
dos movimentos sociais populares, da mesma forma que deve ser repudiada a
criminalização de qualquer liderança social, de direita ou esquerda.
Pois, hoje é com ele. Depois, com
uns comunistas, sindicalistas, operários, jornalistas… Amanhã, quem sabe, se
não vai ser com você?
Por Leonardo Sakamoto.
fonte: blog desabafo Brasil
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