Argentina - Roberto Reyna
A linha editorial do Clarín ficou subordinada às necessidades
do grupo, tornando-se mais errática e com um tom fortemente agressivo em
relação ao governo. Nessa guerra contra o oficialismo, o periódico perdeu boa
parte do capital mais importante de qualquer meio de comunicação: a
credibilidade.
Quatro anos e três semanas após o
Congresso argentino sancionar, por ampla maioria, a Lei n. 26.522, o Supremo
Tribunal Federal proferiu sentença, em 29 de outubro, declarando a
constitucionalidade plena do instrumento jurídico que regula os serviços de
comunicação audiovisual no país. A decisão veio um dia antes de o país
comemorar os trinta anos do direito ao voto. A medida também fez os argentinos
se sentirem mais iguais perante a lei e perceberem que a democracia melhorou
com a ampliação da pluralidade e diversidade de vozes.
A Lei de Meios, como é conhecida,
foi produto de uma longa e ampla construção coletiva. Ela estabelece, entre
seus pontos essenciais, que nenhuma empresa pode ter mais de um canal em TV
aberta ou a cabo na mesma localidade; que 30% do espectro audiovisual se
reserva a entidades sem fins lucrativos; que as concessões têm dez anos de
duração, com possibilidade de renovação por mais dez; cria a figura do defensor
do público; limita a quantidade de licenças para uma única empresa; e cria a
Rádio e Televisão Argentina, uma empresa estatal encarregada de gerenciar todos
os meios de comunicação públicos, com participação da oposição.
Enquanto a maioria dos grupos
midiáticos procurava se adequar à lei, o grupo Clarín questionava a
constitucionalidade dos artigos 41, 45, 48 e 161, que obrigam ao
desinvestimento, afirmando que afetam sua sustentabilidade e, em última
instância, a liberdade de expressão. Com esse argumento, foi somando
estratégias para atrasar o processo e obteve medidas cautelares para não
reduzir a 24 suas 250 licenças de meios audiovisuais. Nos últimos anos,
aproveitando essa condição dominante, o grupo conseguiu fixar preços, definir a
natureza da concorrência e gerar práticas predatórias, como a compra de operadoras
de cabo concorrentes para logo depois fechá-las. O monopólio do Clarín
aniquilou os meios de comunicação regionais e acabou com mais da metade das
1.400 operadoras de TV a cabo independentes que existiam desde os anos 1990.
Com a fusão das operadoras mais poderosas, Cablevisión e Multicanal, o grupo
Clarín ficou com a metade de um mercado de 7 milhões de assinantes.
Ao argumentar contra a lei, o
grupo utilizou um enfoque de livre mercado, afirmando “incapacidade de
sobreviver” se perdesse seu papel dominante, junto ao qual sucumbiria “a única
voz crítica existente no país”. Também sustentou que, por seu peso empresarial,
apenas o jornal Claríntem “condições de realizar jornalismo investigativo”,
além de apresentar outros argumentos que equiparavam liberdade de empresa com
liberdade de expressão. Nesse sentido, Martín Sabbatella, titular da Autoridade
Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca), estava certo quando
observou que “absolutamente todas as empresas da Argentina, menos o Clarín,
apresentaram seu plano de adequação voluntária. Se alguém deseja ter uma
empresa de comunicação audiovisual na Argentina, o limite da lei é suficiente.
Agora, se alguém deseja ter uma empresa de comunicação audiovisual para outros
objetivos, para extorquir a democracia, definir o rumo do país, manipular a
opinião pública ou pôr e tirar presidentes, obviamente não é suficiente”.
Na sentença, o Supremo Tribunal
Federal da Argentina, que ninguém pode acusar de kirchnerista, destacou que o
próprio grupo Clarín circunscreveu a questão em argumentos de caráter
patrimonial e não trouxe nenhum elemento que prove que o desinvestimento
afetará sua liberdade de expressão. Para a corte máxima do país, a Lei de Meios
não apenas é constitucional, como também garante a liberdade de expressão e
“favorece políticas competitivas e antimonopolistas para preservar um direito
fundamental para a vida em democracia, que é a liberdade de expressão e
informação”.
Os próximos passos
A linha editorial do jornal
Clarín, que continua sendo o carro-chefe do grupo, ficou subordinada às
necessidades do conglomerado, tornando-se mais errática e com um tom fortemente
agressivo em relação ao governo. Nessa guerra contra o oficialismo, o periódico
perdeu boa parte do capital mais importante de qualquer meio de comunicação: a
credibilidade. Durante a crise de 2001 e 2002 já tinham aparecido grafites com
a legenda “Nos mean y Clarín dice que llueve” [Mijam em nossa cabeça e o Clarín
diz que está chovendo], mas a perda de confiança se tornou mais evidente nos
últimos anos. Segundo o Instituto Verificador de Circulaciones, em dois anos o
Clarín perdeu um quinto de seus leitores: em 2010, vendia 344.945 exemplares,
enquanto em 2012 esse número caiu para 273.954.
Porém, é preciso admitir que os
cidadãos também perderam nessa guerra frontal contra o governo empreendida pelo
Clarín. Os jornalistas se dividiram entre “independentes”, que reivindicavam
uma falsa objetividade, e “militantes”, que apoiaram o governo de forma
explícita. Nessa batalha, predominaram as opiniões, os interesses, os juízos de
valor e em muitos casos a malícia, enquanto a informação foi se diluindo. A
notícia, como matéria-prima básica da tarefa do jornalista, tornou-se um bem
escasso e o principal prejudicado foi o cidadão, que passou a não ter acesso a
dados imprescindíveis para formar opinião.
Apesar de tudo, para além da
fundamental necessidade de recuperar a informação com base no exercício
honesto, rigoroso e transparente da profissão, está claro que o grupo Clarín,
após a sentença do Supremo Tribunal Federal, recorrerá a todo tipo de
artimanha, em nível administrativo, político e judicial, para não desinvestir.
Contudo, de uma posição desfavorável.
Por outro lado, a Autoridade
Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual deverá gerar as melhores
condições para que 33% das frequências de rádio e televisão sejam reservadas a
organizações sem fins lucrativos (a quem a anterior Lei de Radiodifusão,
imposta pela ditadura militar, proibia expressamente que fossem concessionárias
de licenças) e para que a medida seja efetiva em delinear um novo modo de
comunicação com forte protagonismo dos setores populares. Por sua vez, os meios
de comunicação alternativos, antes condenados à marginalização legal, devem
crescer em qualidade e rigor profissional, e elaborar projetos de comunicação
mais claros para evitar certa inclinação a desempenhar um papel marginal que os
impede de reduzir a lacuna em relação aos meios de massa.
As condições para fortalecer uma
democracia com múltiplas vozes estão dadas. E não apenas no país: o prestigioso
jurista guatemalteco Frank La Rue, relator especial para a Promoção e Proteção
do Direito à Liberdade de Expressão e Opinião das Nações Unidas, assegura que a
nova legislação argentina é uma lei-modelo e um exemplo a ser imitado em toda a
região, onde se desenvolvem processos de transformação política, social e
cultural similares. Em todas essas nações, observa-se o mesmo choque de
interesses entre os que buscam conservar a concentração midiática e os setores
que lutam pelos direitos básicos de liberdade de expressão e soberania popular.
E, em todas elas, os meios de comunicação monopolizados são os tanques de
guerra que tratam de colocar em xeque os governos democráticos.
Roberto Reyna é coordenador da Área
de Comunicação do Centro de Comunicação Popular e Assessoria Legal (Cecopal),
em Córdoba (Argentina).
fonte:Diário liberdade e Le Monde Diplomatique
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