Não há palavras para descrever esta que certamente é a mais grave crise internacional desde os anos 1960. A guerra que o Ocidente, liderado pelos EUA, trava na Síria que, ao entrar no segundo round, com a possibilidade concreta de um ataque direto de Washington a Damasco, pode determinar a sorte de toda Humanidade pelas próximas décadas.
Há um grave impasse entre a
superpotência nuclear e a Rússia. Por um lado, se a Rússia não impedir sob
quaisquer meios um ataque dos EUA à Síria, sua existência como Estado estará
ameaçada, pois Damasco é ainda o mais antigo e fiel aliado de Moscou, desde os
anos 1950, no mundo árabe e no Mar Mediterrâneo, onde mantêm uma base naval. Um
regime laico dócil ao Ocidente ou mesmo “extremista islâmico” instalado manu
militari em Damasco poderá converter o território sírio numa “central de
desestabilização” não apenas para o mundo árabe, mas também para o Cáucaso,
Ásia Central e África, incendiando as fronteiras russa, indiana e chinesa,
habitadas por muçulmanos. Isto poderá ocorrer mesmo se a Síria não for
desintegrada territorialmente depois do ataque.
Por outro lado, se Barack Obama,
presidente dos EUA, recuar (e já deu sinais de recuo, ainda que possam ser
falsos), não importa sob qual justificativa, pode não apenas perder o mandato,
como também poderá ser sucedido por um “radical” de extrema-direita (o que quer
que isto signifique para os padrões dos EUA), com uma linha de governo ainda
mais belicista.
Se a Rússia ceder e a Síria for
atacada, significará que Israel servirá de modelo como Estado para o mundo
não-Ocidental. Isto é, o Ocidente se verá livre para moldar nações e Estados
com bases no exclusivismo étnico e/ou religioso. Toda a Humanidade estará
ameaçada. As fronteiras entre os povos serão constituídas e construídas por
ódio, segregação e sangue. O cerco à China e à Rússia, pelo Ocidente, se intensificará
e estes dois países correm sério risco de se desintegrarem.
Por pior que seja o regime do
Ba'ath, liderado pelo clã Assad, desde 1970, foi o governo que manteve na Síria
um Estado soberano, a ponto de humilhar os EUA no Líbano nos anos 1980, quando
o “País dos Cedros” estava ardendo nas chamas da invasão e ocupação israelense,
iniciada em 1978. O regime do Ba'ath modernizou o país e respeitou e protegeu
pluralismo étnico-religioso, cuja convivência sobrevive há mais de um milênio
na Síria, tal como ocorria no Iraque até 2003, quando foi invadido pelos EUA.
A derrubada do governo de Bashar
al-Assad teria efeitos catastróficos em todo o Levante. Abriria caminho para um
ataque israelense ao Hizbollah (que expulsou as tropas de Israel do território
libanês em 2000 e em 2006), com a possível invasão e ocupação militar do sul do
Líbano, em cooperação com grupos armados salafistas e wahhabitas libaneses
patrocinados pelas petromonarquias árabes e pelos EUA. Neste caso, há fortes
chances de a comunidade xiita libanesa sofrer um processo de limpeza étnica.
Também permitiria a Israel pôr em prática um velho projeto geopolítico
sionista: expulsar/exterminar os palestinos de todo o território ocupado pelos
israelenses. Intensificaria ainda as ações armadas dos “extremistas islâmicos”
contra o governo sectário anti-sunita do Iraque. Assim sendo, o território
sírio serviria de plataforma para um ataque direto ao Irã, cujo regime
“islâmico” e nacionalista é aliado da China e da Rússia.
O resultado mais catastrófico
seria a eliminação das comunidades religiosas não muçulmanas sunitas em todo o
mundo árabe, além a “purificação étnica”, com a expulsão/extermínio das
populações não árabes da região.
Diante deste quadro internacional
dantesco, promovido pelo Ocidente, é inacreditável e inaceitável que a
presidente brasileira Dilma Rousseff não tenha se pronunciado a favor da Síria,
berço do Cristianismo e do primeiro império árabe-muçulmano da História. É
preciso lembrar que há um grande número de descendentes de árabes em solo
brasileiro, exercendo as mais diversas atividades: empresários, políticos,
religiosos, médicos, professores, diplomatas, entre outros. Ignorá-los não é a
decisão sábia para a líder da segunda maior nação das Américas.
O silêncio do Brasil será cobrado
pelas comunidades árabes ao redor do mundo. E sendo o país o principal alvo da
espionagem dos EUA, como divulgado pelo ex-funcionário do governo ianque Edward
Snowden, poderá ser a “bola da vez” a médio prazo, se a agressão à Síria for
bem sucedida.
A sociedade brasileira se
caracteriza pela sua diversidade étnico-confessional, tal qual ocorre até os
dias atuais na Síria e nos demais Estados árabes. Aceitar a limpeza étnica ou o
genocídio de um povo que tem profundos laços com o Brasil passaria um péssimo
sinal para a comunidade internacional. Além disto, a maior nação da América do
Sul, com grandes recursos naturais e energéticos, continua cercada pelas
potências da OTAN e aliados regionais: Colômbia; Guiana, ocupada pela França;
Paraguai, sob um governo pró-EUA; Malvinas, ocupadas pela Inglaterra; além da
IV Frota no Atlântico Sul. Desta forma, a indiferença brasileira à sorte da
Síria poderá incentivar um maior “aperto” dos EUA sobre o continente
sul-americano, cujos atuais governos do Uruguai, da Argentina e da Bolívia
desafiam a hegemonia ianque.
Por este motivo, a guerra do
Ocidente contra a Síria é também contra o Brasil e contra toda a Humanidade.
Devemos todos nos opor a qualquer ato de barbárie, especialmente este.
Ramez Philippe Maalouf é Historiador e doutorando em Geografia Humana
pela USP
Fonte: Correio da Cidadania
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