por Monica Fonseca Severo *
Filho de trabalhadores rurais, menino teve a escola destruída
duas vezes com apoio
do governo. Foto: Leonardo Severo
A professora das terras roubadas
Jaqueline Perez tem vinte e três
anos e nos recebeu em seu local de trabalho, a sala de aulas da Finca Las
Delicias, no Departamento de San Marcos, a mais de 400 quilômetros da capital
da Guatemala. Na entrada do latifúndio, guarda armado com escopeta e cancela.
A Las Delícias havia sido
confiscada pelo estado diante da reiterada falta de pagamento de salários e
impostos. Após longa e árdua batalha judicial, a posse das terras finalmente
deveria ter sido concedida aos trabalhadores, muitos deles nascidos na finca. Nas
últimas etapas da transação, o atual proprietário aplicou o famoso “171”.
Apresentou-se alegando disposição de pagar as dívidas trabalhistas acumuladas
por longos anos. Para a “Justiça”, bastou a promessa, pois ninguém recebeu um
centavo dos salários atrasados ou dos direitos subtraídos pelo sócio das
transnacionais exportadoras de café. Permanecem nas mesmas condições análogas à
de escravidão, nas terras em que suam de sol a sol.
Professora Jaqueline Perez mostra a biblioteca da Finca
"Las
Delícias". Foto: Monica Severo
A professora nos mostrou a
“biblioteca” e os materiais de que dispõe para ensinar. Absolutamente tudo o
que há na escola foi adquirido pela maestra ou pelos pais das crianças. “Temos
também nossa pequena banda, para alegrar um pouco as pessoas que vivem aqui”,
relatou, apontando uns poucos instrumentos musicais.
Não há qualquer alimentação para
os estudantes, nem recursos públicos, pois na “ilógica” da impunidade trata-se
de uma escola particular.
Nenhum desses abusos parece
incomodar ao governo do general reformado Otto Pérez Molina, parceiro de armas
de Ríos Mont, ex-presidente e primeiro ditador latino-americano condenado por
genocídio. Na Guatemala, os sucessivos governos submissos a Washington se
esmeram em trazer tudo encoberto com uma oportuna capa de legalidade. Afinal,
são sócios minoritários no butim.
Uma escola, duas demolições
A Finca Santa Cecília, localizada
a cinco quilômetros da sede do município de San Francisco Zapotlitán, no
Departamento de Suchitepéquez, era estatal e foi privatizada. Quando era
propriedade coletiva, havia ali uma escola para atender aos filhos dos
trabalhadores, que moram dentro do latifúndio, e os professores eram
funcionários do município. A escola oficial funcionou por treze anos, fornecia
material e alguma merenda para as crianças.
Após a privatização, os
professores, os materiais e a merenda foram cancelados. Afinal, trata-se agora
de um empreendimento particular. O prédio da antiga escola foi transformado em
depósito pelo novo dono da fazenda. Frente ao descalabro, os pais construíram
um galpão e capitanearam voluntários para ensinar as crianças.
Um dos seguranças armados da Finca Santa Cecília acompanha a
chegada da equipe do
ComunicaSul. Foto: Joka Madruga
O “fechamento” da escola foi
implementado após reunião do poder público com o privado. Os responsáveis pelo
correspondente à nossa Secretaria Municipal de Educação estiveram na fazenda,
reunidos com o capataz. Nunca conversaram nem receberam a comunidade, que foi
em passeata até o prédio em que funciona a prefeitura sem que conseguisse ter
direito a uma só audiência.
A morte do menino que insistia em
estudar
A proposta dos gestores
municipais - do partido do presidente Otto Pérez Molina-, os mesmos que
acompanharam a destruição da escola comunitária, é que as crianças se desloquem
até uma instituição que fica a dois quilômetros da fazenda ou outra que dista
cinco quilômetros. Em documento impresso, os gestores esbanjam cinismo e
“chamam à reflexão os pais de família de que a única riqueza que podem deixar a
seus filhos é a educação”. Na correspondência, convocam os pais a transferirem
seus filhos para a escola “o quanto antes, para que eles não percam o ano
escolar”.
A opção de caminhada dos dois mil
metros carrega a necessidade de travessia de um rio perigoso e de um terreno
conhecido na região como esconderijo de assaltantes e estupradores. Antonio
Fernandes Reyes tinha 10 anos, vivia na Santa Cecília e estava matriculado
nesta escola. Há dois anos, numa manhã, a caminho do colégio, ele foi tragado
pelo rio. Seu corpo foi encontrado três dias depois pela comunidade, a única
envolvida na busca e resgate do pequeno cadáver. O frio, a fome, a falta de
calçados e roupas adequadas para empreender a caminhada ficaram pequenos diante
do risco da morte.
Limpando a área
Muro, portão e arame farpado confinam as famílias que o
dono da Santa Cecília
quer despejar. Foto: Monica Severo
Marta Julia (44) é moradora da
fazenda e tem sete filhos. O mais velho tem 25 anos e o mais novo tem um.
Estudou só o primeiro ano do curso primário e seu filho mais velho cursou até a
terceira série. Eloquente, Marta cobra: “vivemos suplicando e não nos dão
atenção. Não queremos que nossos filhos, por falta de educação, sejam ladrões e
assassinos. Se não há escola, quem é que os vai educar na rua?”. E avisa: “Não
vamos sair antes que nos paguem tudo. Temos anciãos que deram toda a sua
juventude trabalhando aqui e não vamos sair sem nada. Não é possível que aos
olhos da Lei tudo se compre e se venda”.
Alguns números eloquentes
Com índice de desnutrição
superior ao do Haiti, a Guatemala é o terceiro país mais faminto do mundo.
Cerca de 60% da população não recebe os nutrientes mínimos para a manutenção da
saúde. Além disso, 58% dos habitantes são pobres, 27% muito pobres e 33% não
têm sequer acesso à água potável, segundo dados da Agência Fides, ligada ao
Vaticano. O índice de analfabetos é de 30,9%, só inferior ao do Haiti - com
41,7%, conforme a Alfalit (organização cristã com sedes no Caribe, América
Latina, América Central e em alguns países da África).
O próprio Comité Nacional de
Alfabetização- Conalfa, órgão oficial, reconhece que, entre 2008 e 2011 “o
percentual do PIB destinado ao gasto público em educação continua sendo um dos
mais baixos da América Latina”. Na Guatemala, a Lei de Alfabetização aloca, a
cada ano fiscal, 1% dos recursos do Ministério da Educação para a erradicação
do analfabetismo. Em 2011, foram efetivamente aplicados nestes programas
ínfimos 0,05%. No mesmo ano, 2,55% do PIB guatemalteco foi investido na
educação, menos da metade dos insuficientes 5,3% aplicados em nosso país.
A Unicef aponta que, a cada 1.200
partos/dia na Guatemala, três mães falecem; três bebês morrem antes de cumprir
um dia de vida; seis morrem antes de completar uma semana de nascidos; quatro
antes de um mês; 56 antes de completar um ano e 64 antes dos cinco. Tudo isso
exclusivamente de causas que poderiam ser prevenidas e em um país que exporta
alimentos. Dos 1.067 sobreviventes/dia, 55,38% terão a capacidade cognitiva
comprometida - 591 bebês a cada dia com irreversíveis danos ao desenvolvimento
intelectual, que envolvem o pensamento, a linguagem, a percepção, a memória e o
raciocínio. A mesma Unicef afirma que a desnutrição é mais alta nas famílias em
que o grau de escolaridade das mães é mais baixo.
O círculo vicioso da fome e
ignorância que alimenta o lucro das transnacionais norte-americanas, alavancado
nos últimos sete anos pelo Tratado de Livre Comércio (TLC) EUA-Guatemala.
* Mestre em filosofia, professora efetiva da
rede estadual de ensino do estado de São Paulo e professora convidada do
Departamento de Pós-Graduação da Universidade Gama Filho. Integrou o coletivo
ComunicaSul em visita à Guatemala de 29 de junho a 6 de julho de 2013
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