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segunda-feira, 29 de julho de 2013

Desnutrição e deseducação na Guatemala: o fruto podre “made in USA”




por Monica Fonseca Severo *

Filho de trabalhadores rurais, menino teve a escola destruída
duas vezes com apoio do governo. Foto: Leonardo Severo 

A cada dia nascem na Guatemala 1.200 crianças, das quais 1.067 sobreviverão. Pelos efeitos da desnutrição, 591 destas terão comprometida sua capacidade cognitiva e passarão fome no país exportador de alimentos

A professora das terras roubadas

Jaqueline Perez tem vinte e três anos e nos recebeu em seu local de trabalho, a sala de aulas da Finca Las Delicias, no Departamento de San Marcos, a mais de 400 quilômetros da capital da Guatemala. Na entrada do latifúndio, guarda armado com escopeta e cancela.

A Las Delícias havia sido confiscada pelo estado diante da reiterada falta de pagamento de salários e impostos. Após longa e árdua batalha judicial, a posse das terras finalmente deveria ter sido concedida aos trabalhadores, muitos deles nascidos na finca. Nas últimas etapas da transação, o atual proprietário aplicou o famoso “171”. Apresentou-se alegando disposição de pagar as dívidas trabalhistas acumuladas por longos anos. Para a “Justiça”, bastou a promessa, pois ninguém recebeu um centavo dos salários atrasados ou dos direitos subtraídos pelo sócio das transnacionais exportadoras de café. Permanecem nas mesmas condições análogas à de escravidão, nas terras em que suam de sol a sol.



Professora Jaqueline Perez mostra a biblioteca da Finca
"Las Delícias". Foto: Monica Severo

Jaqueline foi contratada pelo capataz para atender aos 63 estudantes da Finca, sete deles menores de cinco anos. Não conhece o dono da “empresa”, mas sabe, pelo sotaque, que não se trata de um guatemalteco. O “gringo” chega e vai embora de helicóptero, sempre inacessível, escoltado por homens fortemente armados. Ela trabalha seis horas diariamente, de segunda a sexta-feira, recebe Q 1.200,00 (quetzales, a moeda local), aproximadamente R$ 342,00 e não foi registrada no sistema de previdência social. O valor equivale a pouco mais de metade do salário mínimo guatemalteco e é o único investimento do latifundiário na escola.

A professora nos mostrou a “biblioteca” e os materiais de que dispõe para ensinar. Absolutamente tudo o que há na escola foi adquirido pela maestra ou pelos pais das crianças. “Temos também nossa pequena banda, para alegrar um pouco as pessoas que vivem aqui”, relatou, apontando uns poucos instrumentos musicais.

Não há qualquer alimentação para os estudantes, nem recursos públicos, pois na “ilógica” da impunidade trata-se de uma escola particular.


Nenhum desses abusos parece incomodar ao governo do general reformado Otto Pérez Molina, parceiro de armas de Ríos Mont, ex-presidente e primeiro ditador latino-americano condenado por genocídio. Na Guatemala, os sucessivos governos submissos a Washington se esmeram em trazer tudo encoberto com uma oportuna capa de legalidade. Afinal, são sócios minoritários no butim.

Uma escola, duas demolições

A Finca Santa Cecília, localizada a cinco quilômetros da sede do município de San Francisco Zapotlitán, no Departamento de Suchitepéquez, era estatal e foi privatizada. Quando era propriedade coletiva, havia ali uma escola para atender aos filhos dos trabalhadores, que moram dentro do latifúndio, e os professores eram funcionários do município. A escola oficial funcionou por treze anos, fornecia material e alguma merenda para as crianças.
Após a privatização, os professores, os materiais e a merenda foram cancelados. Afinal, trata-se agora de um empreendimento particular. O prédio da antiga escola foi transformado em depósito pelo novo dono da fazenda. Frente ao descalabro, os pais construíram um galpão e capitanearam voluntários para ensinar as crianças.




Um dos seguranças armados da Finca Santa Cecília acompanha a
 chegada da equipe do ComunicaSul. Foto: Joka Madruga

Dulce, doce menina de doze anos, estudava na escola erguida e mantida pela comunidade. Isso até o dia 16 de abril deste ano, quando a mesma foi “desativada” – o prédio foi destruído e os professores “voluntários” impedidos de entrar no terreno guardado por muros altos, rolos de arame farpado, guarita com catraca e homens fortemente armados. Conseguimos entrar na finca graças à mobilização das mulheres que, ao saberem de nossa presença, formaram um cortejo que nos carregou pra dentro dos muros sob o olhar incrédulo dos “guardas”.


O “fechamento” da escola foi implementado após reunião do poder público com o privado. Os responsáveis pelo correspondente à nossa Secretaria Municipal de Educação estiveram na fazenda, reunidos com o capataz. Nunca conversaram nem receberam a comunidade, que foi em passeata até o prédio em que funciona a prefeitura sem que conseguisse ter direito a uma só audiência. 

A morte do menino que insistia em estudar

A proposta dos gestores municipais - do partido do presidente Otto Pérez Molina-, os mesmos que acompanharam a destruição da escola comunitária, é que as crianças se desloquem até uma instituição que fica a dois quilômetros da fazenda ou outra que dista cinco quilômetros. Em documento impresso, os gestores esbanjam cinismo e “chamam à reflexão os pais de família de que a única riqueza que podem deixar a seus filhos é a educação”. Na correspondência, convocam os pais a transferirem seus filhos para a escola “o quanto antes, para que eles não percam o ano escolar”.
A opção de caminhada dos dois mil metros carrega a necessidade de travessia de um rio perigoso e de um terreno conhecido na região como esconderijo de assaltantes e estupradores. Antonio Fernandes Reyes tinha 10 anos, vivia na Santa Cecília e estava matriculado nesta escola. Há dois anos, numa manhã, a caminho do colégio, ele foi tragado pelo rio. Seu corpo foi encontrado três dias depois pela comunidade, a única envolvida na busca e resgate do pequeno cadáver. O frio, a fome, a falta de calçados e roupas adequadas para empreender a caminhada ficaram pequenos diante do risco da morte.

Limpando a área




Muro, portão e arame farpado confinam as famílias que o
 dono da Santa Cecília quer despejar. Foto: Monica Severo

O desmonte da escola, demolida duas vezes, faz parte de uma estratégia do proprietário para expulsar as cerca de 50 famílias que resistem na fazenda. O patrão não quer pagar nenhum tipo de indenização e nem os salários atrasados. Parte do assédio foi a inclusão de mais um segundo muro e portão para cercear a movimentação das famílias, que ficam confinadas numa parte do vasto terreno. Como se não bastasse, os aem pra procurar trabalho e ficamos aqui cuidando das crianças”, relatou.


Marta Julia (44) é moradora da fazenda e tem sete filhos. O mais velho tem 25 anos e o mais novo tem um. Estudou só o primeiro ano do curso primário e seu filho mais velho cursou até a terceira série. Eloquente, Marta cobra: “vivemos suplicando e não nos dão atenção. Não queremos que nossos filhos, por falta de educação, sejam ladrões e assassinos. Se não há escola, quem é que os vai educar na rua?”. E avisa: “Não vamos sair antes que nos paguem tudo. Temos anciãos que deram toda a sua juventude trabalhando aqui e não vamos sair sem nada. Não é possível que aos olhos da Lei tudo se compre e se venda”. 

Alguns números eloquentes

Com índice de desnutrição superior ao do Haiti, a Guatemala é o terceiro país mais faminto do mundo. Cerca de 60% da população não recebe os nutrientes mínimos para a manutenção da saúde. Além disso, 58% dos habitantes são pobres, 27% muito pobres e 33% não têm sequer acesso à água potável, segundo dados da Agência Fides, ligada ao Vaticano. O índice de analfabetos é de 30,9%, só inferior ao do Haiti - com 41,7%, conforme a Alfalit (organização cristã com sedes no Caribe, América Latina, América Central e em alguns países da África).

O próprio Comité Nacional de Alfabetização- Conalfa, órgão oficial, reconhece que, entre 2008 e 2011 “o percentual do PIB destinado ao gasto público em educação continua sendo um dos mais baixos da América Latina”. Na Guatemala, a Lei de Alfabetização aloca, a cada ano fiscal, 1% dos recursos do Ministério da Educação para a erradicação do analfabetismo. Em 2011, foram efetivamente aplicados nestes programas ínfimos 0,05%. No mesmo ano, 2,55% do PIB guatemalteco foi investido na educação, menos da metade dos insuficientes 5,3% aplicados em nosso país.

A Unicef aponta que, a cada 1.200 partos/dia na Guatemala, três mães falecem; três bebês morrem antes de cumprir um dia de vida; seis morrem antes de completar uma semana de nascidos; quatro antes de um mês; 56 antes de completar um ano e 64 antes dos cinco. Tudo isso exclusivamente de causas que poderiam ser prevenidas e em um país que exporta alimentos. Dos 1.067 sobreviventes/dia, 55,38% terão a capacidade cognitiva comprometida - 591 bebês a cada dia com irreversíveis danos ao desenvolvimento intelectual, que envolvem o pensamento, a linguagem, a percepção, a memória e o raciocínio. A mesma Unicef afirma que a desnutrição é mais alta nas famílias em que o grau de escolaridade das mães é mais baixo.
O círculo vicioso da fome e ignorância que alimenta o lucro das transnacionais norte-americanas, alavancado nos últimos sete anos pelo Tratado de Livre Comércio (TLC) EUA-Guatemala.

 * Mestre em filosofia, professora efetiva da rede estadual de ensino do estado de São Paulo e professora convidada do Departamento de Pós-Graduação da Universidade Gama Filho. Integrou o coletivo ComunicaSul em visita à Guatemala de 29 de junho a 6 de julho de 2013

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