A pergunta não pode ser outra: por que os jornalões brasileiros, se
excedendo em face dos jornalões norte-americanos (suas matrizes ideológicas)
mentem tanto com relação à Venezuela e ao chavismo?
Na guerra, a primeira vítima é a verdade. ( Ésquilo )
Roberto
Amaral*
Cegos pelas suas paixões
ideológicas, sua ideologia de classe, nosso baronato da imprensa monopolizada
tem, sistematicamente, deixado de fazer aquilo que diz ser o objetivo de seus
veículos: informar. Chávez, Judas a ser malhado permanentemente, é um dos temas
que dão maior relevo ao fenômeno, no qual tudo vira editorial, e esvanece a
investigação jornalística, sem contraditório. Esse trabalho sempiterno de
manipulação da verdade, embora fuja mais ao controle nesses tempos de aldeia
global conectada, tem sido efetivo na formação de uma classe média, como todos sabemos, ignorantíssima e reacionaríssima.
É irrelevante para nossos
murdochs subdesenvolvidos (o país cresce, agora é ‘emergente’, mas eles, os
barões da indústria mediática, continuam medíocres, subdesenvolvidos, no
sentido mais pejorativo da palavra) que
o processo político venezuelano dos últimos 16 anos se tenha
transcorrido mediante seguidas eleições,
ou seja, mediante o pronunciamento livre da soberania popular, eleições jamais
acusadas dos vícios e das fraudes que permeiam, por exemplo, as eleições
norte-americanas, de que é exemplo notável, indiscutível, a primeira eleição do
Bush filho. Porque a norte-americana é uma democracia representativa de
eleições indiretas, controladas ostensivamente pelo poder econômico, campeãs em
abstenção, ou seja, desapartadas do povo.
Aliás desde a farsa das primárias (alguém na face da Terra tinha dúvida
de que Mitt Romney seria o candidato dos republicanos e Obama, o dos democratas?)
o primeiro round dessas eleições é decidido na captação de recursos dos grandes
conglomerados econômicos, dos quais a Casa Branca, por óbvio, se torna
devedora/servidora, como bem demonstra a generosidade de Obama para com os
banqueiros pegos em fraude.
Mas, voltemos à Venezuela, lembrando
que nesses 16 anos de chavismo uma só vez a vida democrática e constitucional
foi interrompida, exatamente quando a direita venezuelana, com apoio ostensivo
da CIA, do Pentágono, do Departamento de Estado e sob a gerência do embaixador
de Washington em Caracas, e em conluio com a imprensa local (aplaudida pela
imprensa brasileira repetindo a imprensa dos EUA) intentou um golpe militar
(saudado pelo Departamento de Estado em vergonhosa gafe diplomática), desbaratado pelo povo nas ruas.
Disso não se lembra nossa
imprensa ‘liberal’, que (por que será?) não informa aos seus leitores que
Capriles dominou quase 70% do espaço eleitoral, que o chanceler chileno, do
governo conservador de Sebastián Piñera, destacou que as eleições venezuelanas
constituíram “um exercício democrático impecável” (‘Dupla derrota da Casa Branca e do
Pentágono’, Raúl Zibechoi, Programa de las Américas, 21.10.2012) nem informa
que Jimmy Carter declarou que “Das 92 eleições que monitoramos [seu Centro de
direitos humanos], eu diria que o processo eleitoral venezuelano é o melhor do
mundo” (idem.). Nossos jornalões, quando
não mentem, omitem as notícias que contrariam suas linhas editoriais,
desinformando a opinião pública, deliberadamente.
Vejamos as principais
características desse processo que o ex-presidente democrata classifica como “o
melhor do mundo”, descritos pelo professor e constitucionalista Sérvulo
Sérvulo, que acompanhou as eleições venezuelanas, a convite do Conselho
Nacional Eleitoral (Valor, ed. de 9.10.12):
“[...] Na Venezuela as urnas
eleitorais, com sistemas eletrônicos de última geração, foram consideradas
seguras por todos: governo, oposição, especialistas, acompanhantes
internacionais; elas garantem o sigilo e a destinação do voto, ao contrario do
que ocorre no Brasil, onde as urnas são vulneráveis e o autor do voto não sabe
para quem ele foi contado. Tampouco há, no pais de Bolívar, uma Justiça
eleitoral semelhante à brasileira, que acumula funções normativas, executivas e
judiciárias, julgando afinal o que ela própria decidiu e fez; na Venezuela as
eleições são organizadas e realizadas pelo Conselho Nacional Eleitoral, um
poder do Estado tão autônomo quanto o Executivo, o Legislativo e o judiciário;
em caso de impugnação, suas decisões administrativas são submetidas ao
judiciário comum.
Algum leitor acaso estará
lembrado das trapalhadas que caracterizaram a apuração das eleições
norte-americanas que, graças à fraude, deram ao segundo Bush a primeira
eleição, um processo que compreendia e compreende (em face da diversidade de
legislação e procedimento a que cada Estado tem direito) também o voto em
cédulas de papel e a apuração manual?
Antes do pleito, nossa imprensa
tonitruou, autoritária, que Capriles venceria e, se acaso perdesse, seria
graças à fraude (ora, eleições na Venezuela da ‘ditadura’chavista haveriam de
ser necessariamente fraudulentas); outros setores reacionários admitiam a
vitória de Chávez, mas essa seria por margem tão pequena que lhe retiraria
qualquer legitimidade para governar, a não ser perpetrando um golpe. Todas
essas elucubrações dos nossos palpiteiros de encomenda (frequentemente
intitulados ‘formadores de opinião’) foram desmentidas pelos fatos: não houve
fraude, Chávez venceu com mais de 11 pontos sobre Capriles, as eleições não
foram contestadas e a oposição aceitou o resultado. O candidato derrotado
chegou mesmo a manter cordial conversa com o presidente reeleito.
E agora, Murdochs?
O que move as cordas que dirigem
a militância reacionária de nossa imprensa – ainda impressionando os ainda
incautos— é o caráter do regime bolivariano, a saber, a opção pelas massas, que explica as eleições
e reeleições na America do Sul de presidentes desatentos ao catecismo
anti-popular do neoliberalismo: Venezuela, Equador, Brasil, Uruguai, Argentina
e Bolívia. Todos, em doses diferentes,
detestados pela Sociedade Interamericana de Imprensa (segundo Paulo
Henrique Amorim a Sociedad Interamericana del Golpe), atenta às recomendações
da CIA.
Que Chávez seja detestado pela
CIA, que já tentou depô-lo, é
compreensível, porque os interesses norte-americanos vêm sendo por ele
justamente contrariados. O golpismo está na programação genética da política
externa dos EUA. Até nós sabemos, com as costas lanhadas. Mas, que temos
nós a reclamar, se o governo da
Venezuela, democrático, nos apóia
politicamente e abre sua economia para as empresas brasileiras? Insuportável, na realidade, é que a Venezuela tenha à frente de seu
governo um não-branco, ademais de quadro estranho ao establhisment;
é insuportável a sobrevivência política
e popular de um governo nacionalista (vá lá a palavra anatematizada),
que, ao invés de submeter-se aos interesses dos EUA, privilegia os seus,
promove a defesa de suas riquezas – postas a serviço de seu povo— e sua soberania. É insuportável que ao invés
de governar para os 1% que constituem sua perversa e corrupta classe dominante
– forânea, alienígena, com o umbigo e o coração em Miami-— governe com vistas
ao conjunto da população e privilegie os interesses dos mais pobres. Esse
Chávez reeleito para um quarto mandato, apesar da oposição da imprensa
venezuelana e apesar dos muitos milhões que Washington desperdiçou na campanha
do principal candidato oposicionista (havia outros cinco além de Capriles),
distribuiu com seu povo os lucros da PDVESA que, antes, lucros, os quais, antes
iam para os bolsos insaciáveis de meia dúzia de famílias e altos
funcionários;cortou pela metade a pobreza, duplicou o número de alunos nas
universidades e assegurou saúde pública, aposentadoria e cuidados médicos para
milhões de venezuelanos que recebem atenção governamental pela primeira vez,
porque pela primeira vez têm vez e hora os deserdados, o ‘povinho’ de cor que põe as mãos na graxa ou na terra,
‘povinho’ (aqui o termo corrente é ‘povão’), a plebe que sua e veste macacão,
mora distante dos bairros grã-finos e vai para o trabalho de ônibus ou trem.
Essa emergência das massas é tão
profunda que parece superar aquela que levou Lula à presidência. Pensando bem,
o ódio é compreensível.
Roberto Amaral é cientista
político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
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