José Genoino, preso e torturado após a guerrilha do Araguaia. É este ser humano que, para gáudio de seus torturadores, sofre o mais escandaloso linchamento moral a que um homem público brasileiro jamais foi submetido
por Roberto Amaral
De sua vida conheço pouco. O
suficiente, porém, para respeitá-lo e nutrir profundo desprezo pelos que tentam depredar sua história e sua honra.
Filho de camponês no interior do
interior do Ceará, em pleno semiárido nordestino, conheceu na carne, cedo, a as
forças telúricas que o sertanejo pobre precisa arregimentar para sobreviver.
Menino ainda, trabalharia com o pai como “cassaco” nas frentes de trabalho do
DNOCS, carregando pedra e abrindo à força da enxada estradas de terra, pretexto
para dar sobrevida aos flagelados da seca de 1958.
O salário era pago em alimentos e
querosene para o lampião.
Pelas mãos de um pároco
entusiasmado pela Teoria da Libertação (por onde andará o Padre Salmito?), do qual fôra coroinha, deixa a roça para
lutar na cidade grande por melhores oportunidades de sobrevivência digna. Refaz
a trajetória atávica de tantos
antepassados.
Em Fortaleza, trabalha e estuda à
noite em colégios públicos, ingressa na Faculdade de Direito (quando seria
aluno de Paulo Bonavides) e é conquistado pelo movimento estudantil, pelo qual
se destaca para conhecer a primeira prisão de sua vida severina (severíssima,
saberia anos depois): na primeira incursão em defesa da democracia, em uma
passeata contra o golpe de 1964 – golpe, relembre-se, maquinado nos quartéis e
nos altos círculos do empresariado com destacado dos grandes capitães da grande
imprensa brasileira, daquele então e de hoje.
Golpe que, não sabia, naquela
altura, o perseguiria até hoje. Quatro anos passados, ainda universitário, é
preso no Congresso da UNE em Ibiúna (1968), no interior de São Paulo. Solto,
tem a prisão preventiva decretada; sem
alternativa, ingressa na clandestinidade e vai travar como lhe permitem as
circunstâncias sua luta na resistência à ditadura.
Não sei o que, naquela altura,
faziam seus algozes de hoje.
Da luta de massa, ele transita
para a resistência armada. Em junho de 1970, filiado ao PCdoB, ingressa na
guerrilha do Araguaia. Conhece o inferno e descobrirá que sua vida severina era
uma quase-morte. Preso em 1972 pelo
Exército Brasileiro, vê-se,
clandestino, incógnito, à mercê da humilhação, da ofensa, da degradação
física e moral, a ignomínia da tortura a mais insidiosa, implacável, fria,
bestial e científica, na qual o
pau-de-arara, a “cadeira do dragão” (choques elétricos), o sufocamento, os
“telefones” (pancadas nos ouvidos) e os pontapés eram o vestibular do
inimaginável em termos de perversão e perversidade.
Foi torturado ainda no Araguaia
(e como o foi!), em Brasília e em São Paulo. Preso clandestino, incógnito, verdadeiro sequestrado, sem conhecimento da
autoridade judiciária, inteiramente à disposição de seus algozes, sem o amparo
sequer da lei de proteção aos animais, invocada nos idos do Estado Novo pelo
apóstolo Sobral Pinto na defesa de Prestes. Só não padeceu onde não esteve.
Conheci-o no final dos anos 80
(só em 1977 ele recobraria a liberdade), chefiando eu a assessoria da bancada
do PSB na Constituinte liderada pelo inesquecível e saudoso Jamil Haddad, ele
um dos mais destacados deputados do PT.
Ex-guerrilheiro, líder radical do
Partido Revolucionário Comunista (então uma fração dentro do PT), revela-se
conciliador e articulador habilidoso, um dos costuradores de muitas das
conquistas que a esquerda brasileira logrou trazer para a “Constituição
cidadã”. Torturado por militares, poucos
como ele, porém, tanto lutariam pela
aproximação entre civis e militares.
Eu o reveria, corajoso,
dedicado, na jornada do impeachment
contra o ex-presidente Collor, e
continuaria acompanhando sua vida parlamentar, voltada à liberdade, à
democracia e à defesa da soberania nacional. Distanciava-se do
marxismo-leninismo, mas permanecia obcecado pela justiça social, caminhando do
esquerdismo para concepções socialdemocratas avançadas. Para o bem das
esquerdas em geral, cultivava a crítica de nossas organizações.
No primeiro governo Lula é eleito
presidente do PT, em substituição a José Dirceu, e por artes e maquinações que
desconheço termina envolvido no chamado escândalo do “mensalão”. Sempre
alegando inocência, foi acusado, julgado, condenado e apresentou-se à execução
da pena.
É este ser humano (sim, ser
humano!) que, para gáudio de seus torturadores impunes, sofre o mais
escandaloso, brutal, injusto linchamento moral a que um homem público
brasileiro jamais foi submetido.
Não discuto sua culpa nem o
mérito da pena após tão longo e
tumultuado julgamento, e sei que sua biografia não absolve os erros do presente. Digo que o linchamento não
é pena capitulada em nosso Código Penal. Mais do que o justo clamor da opinião
pública ferida em seus brios, cansada de tanta impunidade selecionada e sedenta
de punição, vejo, na sua execração, uma difusa vendetta. Mais que os erros que
lhe são imputados (dessa ainda não suficientemente esclarecida aventura do
“mensalão”), pesa sobre sua imagem de hoje a sombra do guerrilheiro do passado.
É a este que se pune. A biografia agrava a pena.
Os que não puderam matá-lo (como
fizeram com Rubens Paiva, Stuart Angel, Mário Alves, Manoel Alves Filho, Pedro
Pomar, Bérgson Gurjão, Joaquim Câmara, Marighela, Herzog e tantos e tantos
heróis), os que foram derrotados com a redemocratização, os que perderam todas
as eleições, querem a revanche e avançam covardemente sobre o carcará sem asas,
já sem garras, já sem fôlego.
No momento em que escrevo, a
presa é um homem abatido, um cardiopata com uma aorta artificial, lutando
contra crises de pressão arterial. É o cadáver atrasado que, impacientes,
reclamam. É nesse homem que batem, um
prisioneiro da Justiça, cumprindo pena como devem cumprir todos os
condenados. Quem ganha com isso? Que benefícios aufere nossa sociedade com a
prática de tratar o oponente político como inimigo, e inimigo a ser abatido,
destruído, dilacerado?
Estranhos tempos. Estranha
história.
Maluf caminha lampeiro pelos
gabinetes da Corte e o torturador Brilhante Ustra saboreia a aposentadoria que
a impunidade lhe facultou. Mas José Genoino Neto, um homem pobre após quase
sete mandatos de deputado federal, cumpre pena por corrupção.
Estranhos tempos. Estranha
história.
Nesta hora sombria, estendo a mão
ao homem José Genoino Neto e nego-a aos
que lhe jogam pedras, como na Geni de Chico Buarque. Desprezo os linchadores,
como desprezo os que se omitem diante de sua dor.
‘Nenhuma boa ideia merece um
cadáver’. Héctor Erazo, escritor colombiano
Roberto Amaral, advogado e
cientista político, é vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Foi ministro da Ciência e Tecnologia (2003-2004) no governo Lula.
Fonte: Rede Democratica
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