De um lado, o governo; de outro,
a oposição; e, em meio a eles, a mídia privatista. Todos juntos têm produzido
uma avalanche de informações absolutamente desencontradas. Uma guerrilha
comercial e pré-eleitoral, onde cada um levanta dados e faz análises de acordo
com seus próprios interesses.
Enquanto o governo faz um típico
discurso ufanista (veja-se pronunciamento da presidente Dilma na noite logo
após o leilão), citando o um trilhão de reais que poderão ser aportados ao país
nos próximos 35 anos, e os montantes que serão daí direcionados para a sofrível educação e saúde
nacionais, a oposição se enrosca e se contradiz em escala crescente. Vai da
órbita nitidamente liberal, com acusações a um pretenso dirigismo estatal e às
imposições draconianas que teriam sido impostas aos possíveis participantes do
leilão, até a adoção da oratória nacionalista, lamentando a utilização
irresponsável do caixa da Petrobras pela União, drenando recursos da estatal. E
muito bem afinada com este discurso oposicionista está a maioria da grande
imprensa do país.
Por trás de tantos clichês e
lugares comuns, algumas vozes dão, no entanto, o tom do mundo real. Baixa
concorrência no leilão por conta de intervencionismo estatal exacerbado? Bem
longe disso, diz Siqueira: “A meu ver, foi um jogo de cartas marcadas. A baixa
concorrência foi proposital para reduzir a competição e pagar um percentual
ridículo sobre um campo descoberto testado e comprovado como o maior do mundo
(...) Outro fator que pesou foi a denúncia de espionagem feita pelo Edward
Snowden: a Halliburton fornece o software Open Wells, que processa todos os
dados estratégicos da Petrobrás. (...) A cada 72 horas, uma massa de dados da
Petrobrás é remetida para os Five Eyes: EUA, Inglaterra, Austrália, Canadá e
Nova Zelândia. Para atenuar o motivo mais que suficiente para o cancelamento dos leilões, as empresas
dos EUA e Inglaterra saíram.. Mas o braço europeu do cartel ficou: Total e
Shell, que participaram, pertencem aos mesmos donos”.
Quanto aos números que vêm sendo
arrolados pelo governo, Siqueira é também assertivo: “Estes 15 bilhões de
dólares pagos à vista, para cobrir o pagamento de juros extorsivos, causaram a
redução da oferta em óleo/lucro, que seria o mais importante e que caracteriza
a partilha. E, a cada 0,5% ofertado a menos no óleo/lucro, a União perde um
bônus, ou seja, perde mais de 15 bilhões. Libra tem reservas superiores a 15
bilhões de barris, a US$ 100 por barril, o que leva a um valor de US$ 1,5
trilhão, ou R$ 3,3 trilhões. Assim, 0,5 % de 3,3 trilhões de reais é mais do
que um bônus. Uma estratégia medíocre”.
Leia a seguir a entrevista completa.
Correio da Cidadania: Qual a sua visão sobre a decisão do governo de
persistir no leilão de Libra, ocorrido na segunda, 21 de outubro, a despeito de
tantas vozes em contrário de estudiosos, técnicos e movimentos sociais?
Fernando Siqueira: Em primeiro lugar, a Dilma traiu totalmente o
seu discurso de campanha, onde ela disse que privatizar o pré-sal é crime, é
tirar dinheiro da saúde, da educação, segurança e infraestrutura. E isto se dá
por uma questão eleitoreira.
Ela precisa mostrar que o seu
falido modelo econômico funciona. Mas amealha 15 bilhões de dólares para
cumprir o pagamento dos juros extorsivos aos bancos e vende o futuro de três
gerações de brasileiros. Estes 15 bilhões pagos à vista causaram a redução da
oferta em óleo/lucro, que seria o mais importante e que caracteriza a partilha.
E, a cada 0,5% ofertado a menos no óleo/lucro, a União perde um bônus, ou seja,
perde mais de 15 bilhões. Libra tem reservas superiores a 15 bilhões de barris,
a US$ 100 por barril, o que leva a um valor de US$ 1,5 trilhão, ou R$ 3,3
trilhões. Assim, 0,5 % de 3,3 trilhões de reais é mais do que um bônus. Uma
estratégia medíocre.
Correio da Cidadania: O que você pode dizer do fato de ter havido um
único vencedor no leilão, que foi o único concorrente, o consórcio composto por
Petrobras, Shell, Total e estatais chinesas? O fato de a Petrobras ser a
cotista majoritária traz algum refresco para os interesses do país?
Fernando Siqueira: O resultado foi o pior possível; 40% do petróleo
irão para o consórcio para pagar os custos de produção; 15% dos royalties irão
para o consórcio (ele paga os royalties em reais e recebe de volta em
petróleo), e 60% destes 55% irão para as estrangeiras; a União vai receber
41,65% dos 45% que sobraram, ou seja, 18,72% em média, pois o edital criou uma
variação nesse percentual que favorece o consórcio. Uma excrescência inédita em
contratos de partilha.
Explicando: quando as condições
forem muito favoráveis (produção acima de 25.000 barris por poço), o consórcio
dá para a União mais 3,91% (41,65+3,91 = 45,56%). Mas, quando as condições
forem as piores, ou seja, produção diária abaixo de 4.000 barris/dia e o
petróleo abaixo de US$ 60 por barril, a União cede 31,72% do seu percentual
(41,65 – 31,72= 9,93) para o consórcio. Assim, o que vai para a União variará
de 9,93% a 45,56 do óleo/lucro, que é 45%. Logo, a União receberá de 4,45%
(9,93x45) a 20,5% (45,56x45) do total do óleo produzido. Então, o consórcio
vencedor ficará com 95,55% a 79,5% do petróleo de Libra; 40% disto irá para a
Petrobrás e 60% para empresas estrangeiras.
Portanto, mesmo a União recebendo
15% de royalties em dinheiro e 15% de Imposto de Renda, o resultado foi péssimo
para o país. Lembro que, no mundo, os países exportadores ficam com a média de
80% do óleo produzido.
Correio da Cidadania: O último boletim da Auditoria Cidadã da Dívida
traz, de fato, um dado assustador quanto ao percentual mínimo de 42,65% que a União
receberia em óleo excedente: 'observando-se o Edital do leilão (págs. 40 e 41),
verifica-se que, a este valor ofertado pelas petroleiras, serão aplicados
redutores de até 31,72%, fazendo com que a parcela da União possa cair para
ínfimos 9,93%'. Diz ainda o boletim que 'a Petrobrás – que terá uma
participação mínima de 30% no consórcio vencedor do leilão – já foi em grande
parte privatizada, pois seu lucro é distribuído preponderantemente aos
investidores privados, e a parcela pertencente à União deve ser utilizada
obrigatoriamente para o pagamento da questionável dívida pública, conforme
manda a Lei 9.530/1997'. O que você poderia comentar face a cada uma dessas
duas alegações?
Fernando Siqueira: A Auditoria da Dívida presta grande serviço ao
país ao denunciar os juros absurdos pagos aos banqueiros, e esses dados vêm ao
encontro do que acabei de mencionar. O ministro Lobão argumentou comigo que não
poderia devolver Libra à Petrobrás (este campo havia sido cedido a ela por
conta da cessão onerosa) porque ela tem ações em mãos privadas, sendo 31% no
exterior. Respondi que a opção do governo era muito pior: o leilão foi dirigido
para empresas estrangeiras e elas têm 100% das ações no exterior. A Petrobrás
tem 48% do capital em mãos do governo, que a controla, 10% em fundos de pensão
de trabalhadores brasileiros e 3% são do FGTS de trabalhadores.
Correio da Cidadania: Qual é o significado, a seu ver, da baixa
concorrência para o leilão, atribuída pela mídia comercial ao ‘intervencionismo’ e ‘estatismo’ do
governo Dilma?
Fernando Siqueira: A meu ver, foi um jogo de cartas marcadas. A
baixa concorrência foi proposital para reduzir a competição e pagar um
percentual ridículo sobre um campo descoberto testado e comprovado como o maior
do mundo. Previ isto em audiência pública no Senado no dia 25/9/2013.
Outro fator que pesou foi a
denúncia de espionagem feita pelo Edward Snowden, que também mencionei na
audiência: a Halliburton fornece o software Open Wells, que processa todos os
dados estratégicos da Petrobrás. Seus analistas de sistemas têm acesso a todas
as informações da Companhia. Snowden revelou que, a cada 72 horas, uma massa de
dados da Petrobrás é remetida para os Five Eyes: EUA, Inglaterra, Austrália,
Canadá e Nova Zelândia. Para atenuar o motivo mais que suficiente para o
cancelamento dos leilões, as empresas dos EUA e Inglaterra saíram... Mas o
braço europeu do cartel ficou: Total e Shell, que participaram, pertencem aos
mesmos donos.
Correio da Cidadania: Que papel terá a estatal PPSA (Pré-Sal Petróleo
S/A) como gerenciadora dos blocos leiloados?
Fernando Siqueira: Deverá ter um papel fundamental: evitar que as
duas maiores causas de fraudes na produção mundial ocorram: o superfaturamento
dos custos de produção (ressarcidos em petróleo) e a medição a menor do
petróleo produzido. Todavia, a Dilma nomeou raposas para esse galinheiro: o presidente
será o Osvaldo Petrosa, primeiro brasileiro a defender o fim do monopólio e
braço direito do David Zilbertstajn na ANP; e Antonio Claudio, sócio do
presidente do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo), que na realidade comanda
o lobby em favor das empresas estrangeiras por aqui. Este é o preocupante
futuro desta empresa: fiscalizar quem eles defendem.
Correio da Cidadania: Dentre as vozes que se levantam a favor do
leilão, a partir de argumentos pretensamente progressistas, está a do
ex-diretor da ANP Haroldo de Lima. Para Lima, e de acordo com o discurso da
própria presidente Dilma após o leilão, há uma diferença enorme entre
privatização do patrimônio público, o que foi feito com o sistema Telebrás, e a
concessão de um serviço, caso do petróleo –
cujo sistema contratual, no caso do pré-sal e em função do interesse
nacional, teria sido, inclusive, alterado da modalidade concessão para a de
partilha, e poderia render à União até 80% da produção total de Libra, a se
considerarem a soma dos 15% de royalties, o mínimo de 41,65% de excedente de
óleo para a União e os impostos. O que responderia àqueles que assim
argumentam?
Fernando Siqueira: O Haroldo Lima, depois de velho, assumiu o
triste papel de lobista de multinacionais e tem mentido de forma vergonhosa.
Como já afirmei, o máximo que ficará com a União será a média de 30% a 50%,
sendo a grande parte em dinheiro. O petróleo, que é o bem ultra-estratégico,
irá para o consórcio (60% para o exterior).
O edital do leilão é tão ruim que
conseguiu nivelar a partilha com o contrato de concessão, que é péssimo. Sendo
Libra campo gigante, na concessão apareceria a Participação Especial, que seria
da ordem de 20%; e, como os royalties subiram para 15%, com a concessão, a
União ficaria com 35%, que, somado o Imposto de Renda, chegaria a 50%.
Isto atesta o absurdo desse
leilão: num campo já descoberto, testado e comprovado como o maior do mundo, os
avanços conseguidos pelo governo Lula foram anulados pelo governo Dilma. Um
retrocesso brutal.
Correio da Cidadania: Diz-se, também, dentre os defensores do leilão,
entre eles o citado Haroldo de Lima, que ‘o quadro mundial no setor petrolífero
se alterou bastante. As onze maiores petroleiras detentoras de reservas do
mundo passaram a ser estatais, entre as quais a Petrobras. E nenhuma delas se
apoiava mais em monopólio de petróleo (...)
só sobrevivendo em um país dos que têm petróleo, que é o México'. O que
diria aqui?
Fernando Siqueira: Diria que é o contrário: 90% das reservas
mundiais hoje estão em mãos de empresas estatais. O cartel que já dominou 90%
das reservas tem hoje menos de 5%. Assim, na Venezuela (300 bilhões de barris –
a maior do mundo), no México, na Rússia, no Irã, há monopólios. O Iraque tinha
o monopólio, mas o país foi violentado. Nos Emirados Árabes Unidos e Arábia
Saudita, todos têm suas reservas controladas pelo Estado. Ou seja, os lobistas
não param de tentar enganar as pessoas.
Correio da Cidadania: Existe, a seu ver, alguma possibilidade de
cancelar os resultados desse leilão, até mesmo em função da quantidade de
recursos que estão rolando na justiça?
Fernando Siqueira: Acho que sim. Eu denunciei pelo menos três
ilegalidades que subsidiaram as ações, a saber: a) o artigo 2º da nova lei
define áreas estratégicas: são aquelas com baixo risco e alta produtividade.
Libra tem risco zero e é o maior campo do mundo; o artigo 12º diz que áreas
estratégicas devem ser entregues à Petrobrás em contrato de partilha e sem
leilão; b) o edital cria uma variação do percentual, como já citado, que fará
com que, na maior parte do tempo, o percentual do óleo/lucro da União fique
abaixo daquele estipulado pelo CNPE (Conselho Nacional de Política Energética),
ferindo a Lei; c) o artigo 2º (2,8.1) e o item 6.3 do contrato dizem que o
consórcio terá o direito de ser ressarcido, em óleo, do valor do royalty que
pagar. Isto fere as Lei 12.351/10 (e 12.734/12) do petróleo no artigo 42 § 1º,
que diz que o royalty não pode ser ressarcido em nenhuma hipótese.
Portanto, ilegalidades não
faltam. O que tem faltado é independência e coragem aos juízes para julgar com
isenção.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da
Cidadania.
Fonte: Correio da Cidadania
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