Policiais foram mortos com "armas de grosso calibre", aponta
laudo. Armamento pertencia às forças de elite da polícia paraguaia
LEONARDO WEXELL SEVERO, DE
ASSUNÇÃO
Os seis policiais militares do
Grupo Especial de Operações (GEO) que morreram em Marina Kue, Curuguaty, no dia
15 de junho de 2012, foram abatidos com armas de “grosso calibre”, atestou o
médico forense Floriano Irala. O testemunho comprova a inocência dos camponeses,
pois além da força de elite da GEO, somente policiais do FOPE (Força de
Operações da Polícia Especializada) portavam fuzis Galil durante o “confronto”
em que também faleceram 11 sem-terra.
O enfático e detalhado
pronunciamento de Irala caiu como uma bomba no Palácio da Justiça, em Assunção,
na última terça-feira. A declaração, sob juramento, abriu uma semana de
depoimentos que colocaram por terra a chicana patrocinada pelo desgoverno de
Horacio Cartes. Segundo o serviçal das transnacionais e do latifúndio, 324
policiais fortemente armados teriam sido vítimas de uma “emboscada”.
Comprovadamente uma terra
pública, destinada à reforma agrária, Marina Kue vinha sendo alvo de uma
campanha midiática em favor da empresa Campos Morombí, grileira de milhares de
hectares na região desde os tempos da ditadura de Alfredo Stroessner
(1954-1989). A chantagem chegou até a Câmara dos Deputados, onde parlamentares
servis ao agronegócio aprovaram em janeiro de 2012 uma ordem de “averiguação”,
logo ilegalmente transformada em sangrento despejo de 60 camponeses - metade
deles mulheres, crianças e idosos – acampados no local.
Identificando um a um,
esclarecendo caso a caso, o médico Floriano Irala foi explicando sobre o
macabro destino reservado pelas “armas de grosso calibre” aos seis policiais da
GEO: os suboficiais Godoy e Jorge Sanchez foram fulminados com uma bala
certeira; o subcomissário Erven Lovera, três; Wilson Cantero, cinco; Derlis
Benitez, 11 e Osvaldo Sánchez, 13.
O estudo de Floriano Irala se
choca com a hipótese defendida pelo promotor Jalil Rachid, amigo da família de
Blas Riquelme, que se advoga dona das terras em questão, e que foi premiado
recentemente por Cartes com o vice-ministério da Segurança. No posto, o filho
de Blader Rachid, que foi presidente do Partido Colorado (do ditador Alfredo
Stroessner, como Blas Riquelme) controla a polícia e incide diretamente sobre
mais de uma centena de depoentes no processo de Curuguaty.
De acordo com Jalil, o comandante
da ação, Erven Lovera, teria sido morto pelos camponeses, dando início ao
“confronto”. Irala declarou que tanto o
subcomissário quanto os demais policiais a seu lado foram abatidos com armas
automáticas. Armas de grosso calibre e de repetição – até 50 tiros, como o
Galil israelense – que os sem-terra jamais sonharam ter. E que tiveram de
enfrentar.
A Promotoria também vendeu para a
opinião pública, durante mais de três anos, que os camponeses dispunham de
bombas caseiras, “coquetéis molotov”, hoje comprovadamente lampiões com
querosene. Já as perigosas “armadilhas” disseminadas para assassinar os
policiais, repetidas à exaustão pela mídia, nada mais eram do que “ratoeiras”
para matar pequenos animais silvestres e encontravam-se amontoadas em uma
barraca, sem terem nem ao menos como disparar. Ambas questões foram
esclarecidas pelo criminalista Élvio Rojas Peña e viraram motivo de chacota.
FRANCO-ATIRADORES
“Lovera e as lideranças dos
camponeses estavam dialogando, se saudaram, cumprimentaram e em questões de
segundos ocorreram os disparos”, relatou o suboficial Jorge Arguello.
Posicionado à frente de um grupo de policiais no momento em que tudo começou,
Arguello não encontra justificativa para a tragédia. O helicóptero de
reconhecimento, disse, vinha sobrevoando baixo exatamente no local em que o
comandante e os líderes dos camponeses se encontravam reunidos e fez três
advertências aos sem-terra. Logo, a aeronave saiu rapidamente e só se ouviu que
o confronto havia iniciado, relatou.
Conforme os advogados dos
camponeses, o movimento do helicóptero tanto poderia servir para identificar o
local e o alvo para franco-atiradores, como os tiros em Lovera (lineares, na
vertical, onde não estava protegido pelo colete à prova de balas) poderiam ter
sido disparados da própria aeronave. Aqui convém ressaltar que o piloto do
helicóptero, importante peça do quebra-cabeça, morreu em um “acidente”
aeronáutico antes de depor. A trama se torna ainda mais intragável quando é
pública e notória a histórica participação da CIA e do Pentágono em várias
“ações de campo” no Paraguai, sempre com o argumento do “combate ao
terrorismo”. Tal “parceria” foi paralisada apenas durante o governo Lugo.
“Lovera fez curso comigo nos EUA
na área de inteligência e de antiterrorismo na Colômbia, além de outros cursos
em Washington”, explicou o comissário Walter Saul Gomes Benítez, acrescentando
que nestas oportunidades se aprendiam fundamentalmente “técnicas de como tirar
informação”. Perguntado pelo advogado Victor Azuaga se eram cursos patrocinados
pela CIA ou pelo Pentágono, Benítez respondeu que só sabia que eram bancados
pelo “Estado norte-americano”.
ESQUENTA O TEMPO
Esquentando ainda mais o tempo de
Assunção, beirando os 40 graus, o suboficial de criminalística Elvio Rojas
confessou ter guardadas mais de 200 fotografias e filmagens do resultado do
“enfrentamento”, todas de sua própria autoria. Passados mais de três anos e
meio do sangrento episódio, os materiais já deveriam ter sido entregues durante
a etapa de coleta das evidências. Serão finalmente apresentados e anexados ao
processo na próxima semana, como “novas provas”.
“O fato da Promotoria dirigida
por Jalil Rachid não ter solicitado as fotografias e filmagens comprova que
classificou só o que poderia incriminar os camponeses, que são vítimas de um
processo completamente viciado”, declarou o advogado Amélio Sisco. De acordo
com Sisco, “são reiteradas as oposições feitas pela Promotoria para que não
sejam incorporados novos elementos, pois demonstram o contrário de tudo que ela
vem afirmando até agora, sendo comprobatórios da inocência dos camponeses”.
Responsável pela inspeção dos
corpos na área do enfrentamento, o médico forense Matias Arce disse que
encontrou nove cadáveres, sendo que cinco mais ou menos juntos, próximos às
barracas erguidas pelos sem-terra. Algumas horas depois foram achados mais dois
corpos, a cerca de 40 metros de distância. Questionado pela defesa, o médico
afirmou que os corpos haviam sido movidos de local antes da sua chegada, tendo
encontrado a todos com a boca para cima - algo totalmente fora do comum – à
exceção de um deles, de costas, com o crânio esfacelado.
No dia seguinte ao morticínio, o
promotor Jalil Rachid foi indicado para ser o responsável da “causa”, que
envolvia o começo do golpe que levaria à derrubada do presidente Fernando Lugo
uma semana depois, freando o processo de democratização da estrutura agrária
paraguaia. Dados do último censo (2008) apontam que somente 2,5% dos
proprietários detêm 86,5% das terras do país que, penalizado pelo monocultivo
da soja, vê os preços dos alimentos dispararem.
A fome e a miséria pegam pesado,
particularmente no estômago da população indígena, enxotada pelos grandes
proprietários rurais. Ao longo da semana, noticiaram os jornais, cães foram
mortos para saciar a fome de alguns destes miseráveis. Nem uma vírgula sobre o
governo Cartes, responsável pela tragédia humanitária. E canina.
FOTOS E MAIS FOTOS
O médico Matias Arce também
admitiu ter fotografado os cadáveres dos sem-terra e que as imagens se
encontram gravadas em seu computador. A pedido da defesa, serão entregues e
incorporadas ao processo.
O informe do médico forense
sintetiza, “tecnicamente”, como foram encontrados os corpos dos 11 camponeses
mortos: Delfín Ayala, ferido com orifício de entrada e saída (local não
registrado); Fermín Paredes, vários orifícios: braço direito, região
clavicular, abdômen e tórax; Arnaldo Ruiz, ferida no tórax, lado direito;
Luciano Ortega, vários orifícios na cabeça com entrada e saída, três orifícios
no tórax, no lado esquerdo do abdômen, dois orifícios de entrada no músculo
esquerdo, braço direito com orifício de entrada e saída, vários orifícios no
braço, tórax e joelho direito; Francisco Ayala, ferida de bala no lado esquerdo
do pescoço com orifício de saída detrás da orelha, ombro direito, e na saída no
tórax, lado esquerdo; Francisco Ayala, ferida de bala no lado esquerdo do
pescoço, com orifício de saída detrás da orelha, ombro direito e na saída do
tórax, no lado esquerdo; Andrés Riveros, ferida na clavícula esquerda, com
orifício de saída na mesma altura; Adolfo Castro, explosão do crâneo e ferida
no ombro esquerdo a nível do tórax e outra em cima da mesma, igual que no
antebraço esquerdo e músculo do mesmo lado, além de fratura do fêmur; Avelino
Espínola, ferida no tórax, perna direita com orifício de entrada e saída;
Delfín Frutos, ferida na cabeça, lado esquerdo do pescoço, ombro direito, axila
e dedo indicador esquerdo; De Los Santos Aguero, ferida nos músculos esquerdo e
direito, e fratura do fêmur e Luis Paredes, ferida na cavidade bucal com saída
detrás da orelha (indicando execução).
Trazendo novos elementos, o
oficial inspetor Carlos Dario Garcia Valenzuela comunicou que fazia parte de um
segundo efetivo da FOPE enviado para Curuguaty, mas que só chegou após o
conflito. O policial disse que a partir das 13:30 horas seu contingente já
dominava o local, quando um pouco mais tarde, “apareceu uma pessoa num veículo
e começou a recolher materiais. Questionado, se retirou”. Mais, que às 16
horas, “outra pessoa comunicou que tinha ordem de seus patrões para incinerar
tudo”. Esta pessoa era alguém da fazenda Campos Morombí, tida pelos agressores
como os senhores do local. “Nós deixamos que fizesse o que havia vindo fazer,
queimar colchões, roupas e barracas”, relatou o oficial, reconhecendo com todas
as letras que o local do crime ficou completamente comprometido. Valenzuela
disse que, na oportunidade, foi encontrado um dos famosos cadernos de
apontamentos de “colaboração financeira” e listagem de “vigilantes” com nomes,
sobrenomes e apelidos, utilizados pela acusação para sustentar sua tese de
“organização criminosa”. Para protegerem-se de uma tormenta, alegou, a tropa recebeu
ordem de “permanecer na estância” de sexta até a quarta-feira seguinte. Foi
nesta ocasião em que teriam “perdido” o tal caderno, indo a suposta prova,
literalmente, por água abaixo.
Lendo o script entregue pela
promotoria, a “psicóloga” que acompanha quatro dos policiais agressores
extrapolou. Segundo ela, o suboficial da GEO René Toledo Silva lhe disse que em
20 anos passou por muitos enfrentamentos, com narcotraficantes e todo tipo de
delinquentes, mas jamais viu “criminosos tão sem compaixão” como os camponeses
de Curuguaty.
Em contraposição às agressões da
mercenária, o bispo do estado de Misiones, Monsenhor Mario Melanio Medina,
denunciou o massacre como “uma montagem”. "Tudo foi orquestrado. Imaginem
matar dois, três pássaros com um só tiro. Vamos culpar os camponeses, a Lugo e,
na sequência, defender o que o governo Cartes está defendendo", declarou o
bispo de Misiones, reiterando que as terras ocupadas são do Estado e não da
família Riquelme.
SOLIDARIEDADE CONTRA A INJUSTIÇA
Margarita Durán Estrago: rifa de
solidariedade às vítimas
Diante das ameaças do governo,
seus juízes e sua mídia de trancafiarem os camponeses por até 30 anos, cresce a
solidariedade com os presos políticos. Um bom exemplo é o da professora
Margarita Durán Estrago, da Universidade Católica de Assunção, que está
vendendo uma rifa em benefício dos familiares das vítimas de Curuguaty. Os
prêmios são genuínos: um leitão, três galinhas caipiras, três quilos de queijo,
três quilos de farinha de milho e duas dúzias de ovos caipiras.
“Após uma longa mobilização, os
camponeses encontram-se em prisão domiciliar, em um albergue pós-penitenciário
que é uma obra conjunta do Ministério do Trabalho e do Arcebispado de Assunção.
O Estado não se responsabiliza pelos alimentos, só do transporte. Os defensores
também são voluntários, não têm honorários e são do interior. Quando vêm para a
capital, têm a hospedagem, mas não a alimentação. Os camponeses também querem
trazer seus familiares, que dão uma força no julgamento com a sua presença.
Tudo isso tem um custo e a solidariedade torna-se fundamental”, sublinhou
Margarita.
“Esta foi uma semana excelente
para o pleno restabelecimento da verdade”, comemorou o advogado Victor Azuaga,
assinalando que “as testemunhas desmontaram teorias absurdas da acusação, como
a de emboscada, já que as tropas da GEO e da FOPE é que cercaram os camponeses.
Também caíram as teses das bombas incendiárias e das armadilhas”. Outras
acusações como a de invasão de imóvel alheio e de organização criminosa
igualmente se esvaem, apontou Azuaga, uma vez que a terra é pública e a
organização social dos camponeses estava inscrita no Indert (Instituto Nacional
de Desenvolvimento Rural e da Terra). Em outras palavras, os sem-terra lutavam
por seus direitos dentro da legalidade, buscavam terra para trabalhar. “O
resultado destes dias coloca o julgamento em um novo patamar”, concluiu.
FONTE : ComunicaSul
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