Na Cúpula Social do Mercosul, advogado Amélio Sisco denuncia “torturas
e execuções de camponeses no Paraguai"
Leonardo Wexell Severo e Nicolás
Honigesz, de Assunção
“A matança de Curuguaty, onde
morreram 17 pessoas, 11 camponeses e seis policiais, foi planejada pelos
herdeiros políticos de Alfredo Stroessner. O objetivo das torturas e execuções
dos sem-terra era inviabilizar a reforma agrária e a luta dos movimentos
sociais no Paraguai”, denunciou o advogado Amélio Sisco, durante a Cúpula
Social do Mercosul, realizada recentemente em Assunção.
Integrante da equipe de
defensores dos camponeses colocados pela “justiça” paraguaia no banco dos réus,
Amélio Sisco nos concedeu esta entrevista no albergue Virgem das Mercedes.
Durante o julgamento, os sem-terra cumprirão prisão domiciliar no local, com
exceção de Rubén Villalba, preso em Tacumbú, também na capital. O massacre de
Curuguaty ocorreu após o “confronto” entre 324 policiais fortemente armados e
60 camponeses – metade deles mulheres, crianças e idosos – no dia 15 de junho
de 2012. O sangue derramado pela Polícia Nacional e a GEO (Grupo Especial de
Operações) – treinado por militares estadunidenses e por técnicos da CIA-,
abriu caminho para o impeachment do presidente Fernando Lugo uma semana depois.
Com a presença de representantes da Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai,
Uruguai e Venezuela, a Cúpula Social do Mercosul defendeu “a imediata
libertação dos presos políticos de Curuguaty”. As terras em questão foram
griladas pela família de Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado - o
mesmo do ditador Alfredo Stroessner, que governou o país com mão de ferro
durante 35 anos, entre 1954 e 1989 - e o promotor do caso é Jalil Rachid, filho
de Blader Rachid, também ex-presidente do Partido Colorado.
Curuguaty é uma terra pública reclamada pela empresa Campos Morumbi, de
propriedade da família Riquelme, vinculada à ditadura de Alfredo Stroessner.
Como explicar um despejo à bala de um local que deve ser destinado à reforma
agrária?
Em primeiro lugar é preciso deixar
claro que Campos Morumbi não é uma empresa, mas uma organização criminosa, e
que as terras ocupadas pelos camponeses são públicas. Portanto, jamais poderiam
ter sido objeto de um despejo, ainda mais da forma como foi feito. A presença
dos camponeses incomodava o tráfico de drogas. Infelizmente, o promotor Jalil
Rachid, o mesmo que quer a condenação dos sem-terra, nada fez para investigar
os Riquelme, quando foram encontrados 40 hectares de maconha em Campos Morumbi.
No mesmo lugar, há suspeita de que também funcione o maior laboratório de pasta
de coca da região. No local, administrado por um tal Peñas Gambas, existem
grupos de capangas com abundantes antecedentes criminais. Há pista de pouso de
aviões e hangares onde ninguém pode chegar e há denuncias de que várias pessoas
foram assassinadas, sem que a imprensa divulgue nada.
O que aconteceu no dia 15 de junho de 2012?
Os camponeses foram informados,
por pessoas que haviam se infiltrado no local, no dia 14, de que havia uma
ordem precisa e que grupos militares com armas de guerra viriam matar três
dirigentes: um deles era Rubén Villalba, um de sobrenome Ortiz e outro
conhecido como Pindu. Eram os dirigentes mais fortes.
Uma vez alertados, como os camponeses reagiram?
Ingressaram mais pessoas neste
dia e se prepararam. Dispunham somente de máscaras para cobrir a boca e pintura
para os rostos. Houve a orientação para que Rubén Villalba saísse para não ser
morto. A informação não era concreta em relação aos outros dois dirigentes. Na
madrugada, começaram a passar sal nas máscaras – já que iriam ser lançadas
muitas bombas de gás lacrimogêneo – e se pintaram para que a polícia não
pudesse identificar se realmente havia ou não um Rubén Villalba no local.
Houve uma pequena reunião do
comando da ação militar, no próprio local, para definir como agiriam.
Se reuniram dentro da estância
Campos Morumbi a promotora Ninfa Aguilar, o comandante da Polícia Nacional,
Arnaldo Sanabria, e o chefe do GEO (Grupo Especial de Operações), Erven Lovera.
Em certo momento eles já tinham falado que deviam disparar contra os
camponeses. Os chefes conversam. Erven Lovera ingressaria pelo Norte, enquanto
um policial de sobrenome Gamarra entraria pelo Sul. Se escuta, a partir de um
vídeo que está no youtube, editado pelo jornal ABC Color, Lovera dizer: vocês
invadem por este lado e nós atropelamos pelo outro. Em algumas conversas, em
círculos fechados, com a promotora e Sanabria, Erven Lovera diz que seu
“cliente” ia disparar um ou dois tiros. Na nossa opinião, este “cliente” era
uma pessoa infiltrada entre os sem-terra e que ia realizar os dois primeiros
disparos. Isso daria o pretexto para a polícia abrir fogo. Em um momento dado,
se vê Lovera levantando o polegar esquerdo e apontando que ali se encontrava
Rubens Villalba, dizendo que, assim que disparassem do helicóptero, ele também
iria atirar. Ou seja, implicitamente disse que esperava o sinal para matar
Rubens Villalba. O que Lovera não sabia era que sua morte também fazia parte de
um plano mais ambicioso, que teria impactos ainda mais profundos no conjunto da
opinião pública. Todos os seis policiais mortos eram da equipe de Lovera. Na
minha opinião, ele conhecia apenas parte do quebra-cabeça e não pensava que
seria descartado, como foi.
Mas o plano fugiu do controle.
Havia problemas de visibilidade
do helicóptero até a ponte. Por isso Lovera decide passar a ponte e ir para um
local mais claro onde estavam os camponeses. Tinha de chegar aí, executar
Villalba e retirar-se, mas não teve esta oportunidade. Ficou misturado com os
camponeses e é ali em que caem metralhados camponeses e policiais, entre eles o
próprio Lovera. O primeiro tiro foi dado em Villalba, que caiu inconsciente.
O prêmio por Villalba pode tê-los
deixado afoitos...
Havia o prêmio pela morte de
Villalba. Os grandes sojeiros, os grandes latifundiários, fizeram uma vaquinha
para terminar com as lutas sociais, com a luta pela reforma agrária. Esta era a
forma como haviam planejado. Lovera vai e diz ao piloto que vá até um lado da
ponte para que depois começassem a disparar. Iam entrar e executar a quem
tivessem de executar. Precisavam matar Ruben Villalba. O chefe, Sanabria diz na
reunião: aqui o cabeça é Ruben Villalba. Há outros com ordem de captura, lembra
a promotora, citando Ortega e Pindu. Fica claro que o objetivo era incriminar
os camponeses com os disparos para justificar os assassinatos.
A partir deste impulso ocorre a matança.
Eram duas frentes: a de Lovera e
a de Gamarra. Em ambos os lados havia a disputa de quem levaria o prêmio maior.
Havia uma rivalidade entre a FOPE (Força Operativa Policial Especializada) e o
GEO, que são as tropas de elite que usam fuzis Galil, com os que a maioria
morreram baleados. Estas provas a Promotoria fez com que desaparecessem para
dizer que foram executados com balas de escopeta, o que não tem nenhum
cabimento. O erro de Lovera foi precisamente não conseguir sair porque houve
enfrentamento entre os policiais e camponeses que estavam ali. Se escutaram dois disparos e aí caem
metralhados camponeses e policiais. Camponeses feridos pelas costas e na
cabeça, pelos flancos esquerdo e direito, e os policiais da mesma maneira, de
forma oposta, na cabeça e nas laterais esquerda e direita. O trabalho saiu mal.
Forças do Estado a serviço do grande capital, uma tragédia que se
repete.
Isso me recorda um acontecimento
no final do ano 89, depois da queda da ditadura de Stroessner, quando os
trabalhadores de Itaipu fizeram uma greve interminável. O governo do general
Rodríguez não conseguia vencê-los. Isso criava dificuldades para as empresas de
Wasmozy [Juan Carlos Wasmosy Monti, que viria a ser presidente do país de 1993
a 1998], que detinha as concessões. Então um grupo de matadores foi enviado de
Assunção. Ficaram entrincheirados em um monte, num local mais alto, para matar
dois dirigentes, um deles Efigênio Lisboa, a quem conheço. A diferença era que
os franco-atiradores precisavam matar os dirigentes e sair correndo.
Assassinariam e disparariam nos demais operários para assustá-los a fim de que
terminassem a greve. Na oportunidade o trabalho saiu conforme havia sido
planejado pela força assassina. Mas em Curuguaty eram dois grupos. Não
precisava ter havido uma única morte de policiais, tinham que morrer três ou
quatro camponeses, no máximo. Está claro que a polícia tinha o objetivo de
matar, isso temos provas. O chefe Sanabria disse claramente: o meu problema é
ter que disparar contra eles na retaguarda, é o que tenho de fazer.
Além das suposições, há provas e
inúmeras evidências sobre a tentativa de encobrir a responsabilidade da polícia
no massacre como o desaparecimento das filmagens do helicóptero que sobrevoou o
local durante toda a ação e, mais recentemente, a morte do piloto às vésperas
do seu depoimento...
Todo grupo policial leva gente
que filma. Cada grupo leva filmadoras, além do que foi filmado pelos policiais
com seus celulares. Por isso não existe filmagem do lado Norte, onde estava
Erven Lovera, local em que morreram os primeiros camponeses e policiais. No
lado Norte apenas se vê algumas mulheres camponesas que vão saindo do lugar e
alguns camponeses com foices, facões e paus, além de umas três ou quatro
escopetas enferrujadas, velhas. Desapareceram com as evidências. As imagens do
helicóptero foram apagadas. Os próprios policiais reconheceram que havia
material suficiente para a gravação. Quando viram que houve uma matança de
policiais e camponeses com armas da própria polícia, apagaram. Além disso,
foram registradas execuções de camponeses. Por isso fizeram com que as provas
desaparecessem.
Há filmagens incriminadoras a respeito da agressão que vazaram...
Armaram um cenário, para ser
divulgado pela imprensa, de que as “autoridades” falavam com um microfone para
os camponeses se renderem, que seus direitos seriam assegurados, que estariam
em segurança. Mas alguém instalou um microfone no meio dos comandantes da ação
e gravou o que foi tramado na realidade. O jornalista Pablo Medina,
posteriormente assassinado, pode ter colocado a escuta em alguém. Ele era
correspondente do ABC Color e acabou sendo executado logo depois, com sua
assistente Antonia Almada, em uma estrada rural de Curuguaty. Um advogado
espanhol, Airton Martinez, que acompanha e é testemunha do processo, lhe havia
pedido materiais gráficos, fotos, filmagens, e Medina disse que tinha, mas já
havia remetido tudo para o ABC e não queria se comprometer. Então Martínez
perguntou: Qual é o problema? Queres vender teu material? E Medina respondeu
que o problema não era dinheiro, que já lhe haviam matado dois irmãos. E eu não
quero ser o próximo morto, disse ao advogado.
Há uma sequência de mortes...
Também mataram o dirigente
camponês Vidal Vega, que acompanhava de perto os trâmites de Curuguaty junto ao
Indert (Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra). Também
faleceram outras pessoas. Vou apenas citar o caso do piloto do helicóptero, que
supostamente tinha uma avaria. Assim mandaram que a aeronave viesse de Cidade
do Leste para ser consertada em Assunção. Uma loucura. O helicóptero teria de
ficar no local em que estava e o mecânico ir até lá.
Com estas provas e evidências podemos ter confiança que será feita
justiça?
Nós enfrentamos um processo
inteiramente viciado, com muitas falsificações e fraudes visando incriminar a
camponeses, que são vítimas, e criminalizar os movimentos sociais. Prova disso
é que não há um único policial ou mandante no banco dos réus, apenas
trabalhadores que querem um pedaço de terra para plantar. Daí a importância da
pressão da opinião pública, da solidariedade internacional, para que seja feita
justiça e os verdadeiros criminosos não fiquem impunes.
Fonte: site ComunicaSul
Nenhum comentário:
Postar um comentário