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domingo, 25 de maio de 2014

Porque ‘não vai ter Copa’


por Montserrat Martins.
Tem quem não entenda os protestos e ache que é coisa de baderneiros ou golpistas. Vamos aos fatos, então. Quando o Brasil foi escolhido como sede e assinou o protocolo para a Copa do Mundo, lá em 2007, o governo afirmou que nenhum dinheiro público seria gasto, que as obras seriam da iniciativa privada, o que seria perfeitamente possível, dado o potencial de negócios gerado por uma competição desse porte. Só que nada disso ocorreu, não houve planejamento e após 7 anos, quando chegou a hora do “vamos ver”, tudo estava por ser feito. O governo que prometera nada gastar na Copa, acabou desviando dos cofres públicos pelo menos 25 bilhões de reais (quase o orçamento anual do RS). “Desviando” é o termo certo, já que a promessa era que a iniciativa privada investisse na Copa e se beneficiasse com esse empreendimento.

A revolta contra a falta de investimentos em saúde e educação não é retórica, a associação entre os fatos é verídica. Dez bilhões deixaram de ser investidos em saneamento, valor que foi gasto apenas em estádios. Não é mesmo uma “revolta sem causa” e também não é uma manifestação eleitoral, já que os protestantes não tem partido, na sua grande maioria, nem tem apoio da mídia.

O povo brasileiro sempre foi criticado por sua passividade, questionamento que uma peça de teatro clássica consagrou, “Esperando Godot”. Estamos sempre esperando que chegue alguém e nos salve, faça por nós o que não temos a iniciativa de fazer. Nos falta convicção, para não dizer que falta coragem, nos falta autoestima, nos falta identidade. Acontece que não adianta nos reunirmos todos os dias para esperar Godot que nunca chega. Um dia teremos de acordar e fazer por nós mesmos.

Os protestos não são uma solução em si mesmos, é óbvio. Serviram para enterrar a famigerada PEC 37 que iria tirar o poder de investigação do Ministério Público, o que já é alguma coisa. Mas principalmente sinalizaram que a era do “pão e circo” deve ficar para trás, para a política clássica romana, que não é essa a política que queremos para o século XXI.


Há mais um detalhe perverso, ainda. Na tradicional cultura do “pão e circo”, o povo tinha direito ao lazer, à alegria. O mais paradoxal desse enorme gasto em elefantes brancos é que o povo não vai poder entrar neles, porque o “padrão Fifa” é caro e elitista, apenas para quem pode pagar. Quer dizer, o governo investe uma fortuna mas ao invés de oferecer circo, tira os estádios – construídos com dinheiro público – do povo, que antes do “padrão Fifa” tinha direito pelo menos a ir numa geral ou “coréia” e gritar pelo seu time, ao vivo. Agora, chega a ser humilhante ver as obras suntuosas do esporte que é a paixão popular, mas da qual o povão acaba de ser excluído.

“Não vai ter Copa” é um meme, não quer dizer que os jogos não vão ocorrer, literalmente. Quer dizer que a Copa imaginada como consagração da velha política vai se voltar contra ela, como já aconteceu durante a Copa das Confederações, a Copa que “não houve”, porque o governo não pode faturar em cima, ao contrário, teve de passar o tempo todo dando explicações. Que venham as seleções, os turistas, que conheçam as belezas naturais do nosso país, que movimentem o comércio, que se apaixonem pelo Brasil e até mesmo que nossa Seleção ganhe a Copa, como já ganhou a das Confederações. Que aconteça tudo isso sem sermos feitos de bobos, achando tudo lindo e gratos ao governo por desviar verbas públicas de coisas mais importantes para nós.

O “pão e circo” acabou, é isso que quer dizer “não vai ter Copa”, que não é contra um governo, é contra um jeito muito antigo de governar.

Montserrat Martins é colunista do Portal EcoDebate e psiquiatra.


Fonte:    Desacato e EcoDebate.

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