Brasil - IHU - No período de 1986
a 1997, foram registradas 244 mortes por suicídio entre os Guarani-Kaiowá de
MS, número que praticamente triplicou na última década. De 2000 a 2013 foram
684 casos.
A reportagem é de Carolina Fasolo
e publicada pelo portal do Cimi, 23-05-2014.
No dia 3 de abril, quando
amanheceu em uma aldeia Guarani-Kaiowá, localizada no sul do estado de Mato
Grosso do Sul, a mãe de três filhos abriu a porta de casa e paralisou ao ver o
corpo frágil de sua menina mais nova suspenso pelo lençol, amarrado à árvore
por um nó que parecia firme. No dia anterior, a garota havia completado 13
anos.
"A mãe disse que ela chegou
da escola muito triste e reclamando de dores na cabeça", conta Otoniel,
liderança Guarani-Kaiowá. "Depois que todos foram dormir ela amarrou o
lençol na árvore e se matou. Um primo dela de 12 anos tinha se enforcado uma
semana antes. E uns dias depois que ela morreu outro adolescente, de 16 anos,
também se suicidou na mesma aldeia. Fui até lá para saber o que estava
acontecendo".
Os três enforcamentos em menos de
duas semanas fazem parte de uma estatística que no ano de 2013 ganhou contornos
históricos. Foram contabilizados 73 casos de suicídios entre os indígenas de
Mato Grosso do Sul. De acordo com registros do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), é o maior número em 28 anos. Os dados, apurados pelo Distrito Sanitário
Especial Indígena (DSEI/MS), constam no Relatório de Violência Contra os Povos
Indígenas no Brasil, a ser divulgado pelo Cimi em junho.
Dos 73 indígenas mortos, 72 eram
do povo Guarani-Kaiowá, a maioria com idade entre 15 e 30 anos. Otoniel
acredita que o motivo de tantos jovens cometerem suicídio é a falta de
perspectiva. "Não têm futuro, não têm respeito, não têm trabalho e nem
terra pra plantar e viver. Escolhem morrer porque na verdade já estão mortos
por dentro".
O procurador da República Marco
Antônio Delfino de Almeida, do Ministério Público Federal (MPF) em Dourados
(MS), explica que as oportunidades de trabalho para os indígenas são
praticamente restritas a atividades subalternas degradantes, como o corte da
cana-de-açúcar. "Temos escolas indígenas, mas o modelo educacional não foi
construído para a comunidade, existe apenas uma 'casca indígena', que não contempla
a inserção do jovem no processo produtivo", completa.
"A discriminação e o ódio
étnico, condutas incentivadas inclusive pelos meios de comunicação, acentuam
sobremaneira o problema dos suicídios. Os indígenas são pintados como entraves,
empecilhos, obstáculos ao desenvolvimento. É como se a mídia passasse a
mensagem 'Se você quer ficar bem, tire o índio do seu caminho', ressalta o
procurador.
13 anos, 684 suicídios
No período de 1986 a 1997, foram
registradas 244 mortes por suicídio entre os Guarani-Kaiowá de MS, número que
praticamente triplicou na última década. De 2000 a 2013 foram 684 casos.
"As atuais condições de vida desses indígenas, que desembocam em estatísticas
assombrosas de violência, têm origem num processo histórico", explica
Marco Antonio Delfino. "O que aconteceu foi uma transferência brutal, por
parte da União, de territórios indígenas para não índios".
A transferência se deu,
principalmente, pelo então Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que demarcou,
entre 1915 e 1928, oito pequenas reservas no sul do estado para onde diferentes
povos indígenas foram obrigados a migrar. "As reservas demarcadas serviam
como um depósito gigantesco de mão de obra a ser utilizada conforme os
interesses econômicos. Todo o processo de confinamento indígena teve como
finalidade sua utilização como mão de obra para os projetos agrícolas
implantados no país, desde a cultura da erva-mate até recentemente, com a
cana-de-açúcar", completa o procurador.
O confinamento compulsório, com a
sobreposição de aldeias distintas e de dinâmicas político-religiosas
peculiares, acirrou o conflito dentro das reservas, alterando profundamente as
formas de organização social, econômica e cultural dos indígenas, o que
resultou em índices alarmantes de superpopulação, miséria e violência nestes
espaços.
Definida pela
vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, como "a maior
tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo", a Reserva
Indígena de Dourados é um dos exemplos mais contundentes desse processo
histórico. Encravada no perímetro urbano do município, na Reserva vivem hoje
mais de 13 mil indígenas em 3,6 hectares de terra. É a maior densidade
populacional entre todas as comunidades tradicionais do país, e onde
aconteceram 18 dos 73 casos de suicídio no estado em 2013.
"Hoje enfrentamos uma
carência extremamente aguda de políticas públicas. Desde 2009 existem
discussões para implantar um Centro de Atenção Psicossocial Indígena em Durados
mas, por enquanto, não foi adotada nenhuma medida concreta para sua
construção", diz Marco Antonio Delfino. "A impressão que se tem é que
as pessoas perderam o controle sobre o monstro que criaram, que são essas
reservas. Então, fica nesse jogo de empurra-empurra, sempre com soluções
paliativas. Precisamos reconhecer e reparar os erros cometidos para que existam
soluções efetivas. O primeiro passo é demarcar os territórios usurpados dos
indígenas", conclui o procurador.
FONTE: Diario Liberdade
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