Miguel Urbano Rodrigues
Reli há dias o último livro de
Eric Hobsbawm: "Como Mudar o Mundo – Marx e o Marxismo,1840-2011" [1]
. Publicado pouco antes do seu falecimento, é uma coletânea de ensaios,
conferências e artigos escritos entre 1956 e 2009.
Distancio-me como comunista de
parte da obra do historiador inglês. A discordância de muitas das suas
opiniões, nomeadamente a reflexão sobre o desaparecimento da União Soviética e
a agressão imperialista ao povo afegão, não me impede de aconselhar a leitura
de "Como Mudar o Mundo". O seu mérito maior é o balanço que apresenta
do legado de Karl Marx e da sua profunda repercussão nos séculos XIX e XX e
neste início do XXI. Tal como assinala no prefácio, "o marxismo foi
durante os últimos 130 anos, um tema importante no contexto intelectual do
mundo moderno e, através da mobilização de forças sociais, uma presença
crucial, e em alguns períodos decisiva, na história do século XX".
A devastadora crise de
civilização que hoje enfrentamos demonstra que o capitalismo não tem solução
para os problemas da humanidade e terá de ser erradicado. Marx é, hoje como
ontem, atualíssimo: ajuda a compreender o presente e abre as alamedas do
futuro.
DO ENTUSIASMO À DESERÇÃO
Lenin afirmou que sem teoria
revolução alguma pode vencer e ter longa vida. Enunciou uma evidência
confirmada pela História.
Daí a importância dos
intelectuais revolucionários como produtores e divulgadores de ideologia.
A obra de Marx, a principiar pelo
Manifesto Comunista, não teria alcançado projeção mundial, cumprindo um papel
insubstituível como guia para a ação revolucionária, se sucessivas gerações de
intelectuais não a houvessem divulgado, transmitindo às massas uma nova
compreensão da História, da economia, da política.
Mas, ao comentá-la e
interpretá-la, muitos autores também a desfiguraram.
O livro de Hobsbawm contém uma
informação densa e valiosa sobre a lenta divulgação de Marx ao longo da segunda
metade do século XIX e das primeiras décadas do século XX.
Neste desambicioso artigo apenas
chamarei a atenção para alguns aspetos da difusão do marxismo antes e depois da
segunda guerra mundial e da influência que as posições assumidas por autores
que comentaram e interpretaram Marx, deformando-lhe o pensamento, tiveram no
rumo de partidos operários tradicionais e de grandes lutas sociais
contemporâneas.
Nos anos 20 e 30 do seculo
passado, a ascensão do fascismo na Itália e na Alemanha provocou um interesse
crescente dos intelectuais pelo marxismo. Escritores como HG Wells, Anatole
France, Bernard Shaw, André Malraux, Aragon, entre outros, assumiram a defesa
da União Soviética e, na Europa Ocidental e nos EUA, os debates sobre a obra de
Marx ganharam atualidade. Três prémios Nobel de Literatura, Aragon, Roger
Martin du Gard e André Gide aderiram ao PCF. A ameaça fascista condicionava o
futuro da Humanidade. Após a II Guerra Mundial, o interesse pelo marxismo
aumentou. O papel decisivo da URSS na derrota do Reich nazi contribuiu muito
para a adesão maciça de milhares de intelectuais aos partidos comunistas.
Filósofos como Bertrand Russell e Jean Paul Sartre assumiram frontalmente a
solidariedade com o povo soviético e os movimentos em defesa da Paz. Nas
universidades, professores que não eram marxistas aderiram ao partido
comunista.
A partir dos anos 50, houve uma
autêntica enxurrada de livros e debates sobre o marxismo. Mas, como sublinha
Hobsbawm, "a grande maioria dos intelectuais marxistas nesse período era
constituída de marxistas recentes para os quais o próprio marxismo era coisa
tão nova quanto, digamos, o jazz, o cinema e a literatura policial" tinham
sido para as gerações anteriores.
O marxismo dos europeus era,
porém, até à morte de Stalin, com poucas exceções, o divulgado pelas
publicações da Academia das Ciências da URSS.
As interpretações alternativas da
teoria marxista somente surgiram após as polémicas desencadeadas pelo XX
Congresso do PCUS.
Os textos dos filósofos da Escola
de Frankfurt, de Adorno, Horkheimer e Marcuse, porta-vozes do chamado
"marxismo ocidental", são na época tema de apaixonados debates nos
campus universitários, coincidindo com as campanhas dos grandes media contra
Stalin. A palavra stalinismo, criada pela burguesia, entra no léxico político.
Para muitos intelectuais, a URSS,
na qual durante décadas viam a pátria do socialismo, o país que construíra uma
sociedade símbolo do progresso e do humanismo, tornou-se, no auge de campanhas
anticomunistas, a imagem da tirania e da desumanização da vida.
Os livros de Gramsci, até então
pouco conhecidos fora da Itália, conhecem difusão mundial, extravasando dos
meios académicos. Mas a leitura da “mensagem” da obra do autor dos
"Cadernos do Cárcere" difere muito, mesmo no âmbito dos Partidos Comunistas
do Ocidente.
A própria teoria da Hegemonia – a
dominação da cultura de uma classe sobre o conjunto da sociedade - foi
submetida a múltiplas interpretações, algumas incompatíveis. Em França, na
Itália, em Espanha, gramscianos entusiastas utilizaram-na para desvalorizar a
luta de classes. Desvirtuado, Gramsci, um marxista original - inclusive um
"leninista" na polémica opinião de Hobsbawm – foi bandeira do
eurocomunismo. No Brasil e em Cuba destacados comunistas também o invocaram,
distorcendo-lhe o pensamento.
Paradoxalmente, as campanhas
contra a URSS e o "socialismo real" não afetaram a difusão do
marxismo.
O anti-sovietismo, sobretudo após
os acontecimentos da Checoslováquia em l968, marcou a opção revisionista de
influentes partidos comunistas do Ocidente, mas não impediu a expansão do
marxismo em escala mundial.
A ruptura entre Moscovo e Pequim,
a Revolução Cubana, a opção pelo socialismo da maioria dos movimentos de
libertação africanos, a ampla difusão das teses de Frantz Fanon, a disseminação
do Eurocomunismo criaram uma atmosfera de confusão ideológica.
Os estruturalistas, nomeadamente
Althusser e Poulantzas, fizeram escola, semeando discípulos em dezenas de
países. O primeiro foi, aliás, membro do Comité Central do Partido Francês.
Textos de Che Guevara também
foram utilizados, com frequência e má-fé, por intelectuais que, deturpando-lhe
o pensamento, assumindo-se como marxistas, utilizaram o eurocomunismo como
alavanca de combate à União Soviética.
Dirigentes e académicos dos
partidos comunistas da França e da Itália que aderiram desde o início à
perestroika não hesitaram em glorificar Gorbatchov e acompanharam com
entusiasmo o processo de destruição da União Soviética. Das críticas a Stalin
passaram rapidamente à crítica de Lenin.
O revisionismo de alguns partidos
operários evoluiu em poucos anos para posições ostensivamente anticomunistas.
Um secretário-geral do PCF,
Robert Hue, saudou como acontecimento positivo a desagregação da URSS,
afirmando que tudo no país da Revolução de Outubro tinha sido negativo.
A VAGA REVISIONISTA
A ofensiva revisionista precedeu,
aliás, a perestroika.
As obras dos ideólogos da Escola
de Frankfurt foram amplamente publicadas nos EUA e saudadas pelas "novas
esquerdas" americanas como contribuição revolucionaria ao marxismo. Nas
grandes universidades, os epígonos de Marcuse condenaram em bloco os partidos
comunistas existentes, revisionistas ou não, qualificando-os de traidores da
causa socialista.
Os livros de Marx voltaram a ser
amplamente editados e debatidos. “O Capital”, entretanto, foi tratado como se
fosse quase uma obra de epistemologia. Segundo Hobsbawm, “ a pesquisa e a
análise do mundo real esconderam-se atrás do exame generalizado das suas
estruturas e mecanismos, ou até atrás da investigação ainda mais genérica de
como ele devia ser apreendido. Os teóricos eram tentados a passar de um exame
dos problemas e perspetivas específicos de sociedades reais para um debate
sobre a "articulação" dos "modos de produção" em geral”.
Muitos intelectuais, sobretudo os
estruturalistas, esforçaram-se, na exegese da obra de Karl Marx, por opor os
escritos do jovem Marx aos do Marx da maturidade. Dezenas de livros foram
editados tendo por tema supostas e insanáveis contradições entre "Os Manuscritos
de 1844" e "O Capital". Forjar imaginárias contradições entre
Marx e Engels e opor ambos a Lenin foi outra modalidade de anticomunismo
cultivada por marxólogos anti-soviéticos.
Esse cosmopolitismo marxizante
somente deixou de fascinar os académicos das grandes universidades do Ocidente
quando a URSS se desagregou e um capitalismo selvagem se implantou na Rússia,
durante o consulado de Ieltsin.
O desaparecimento da União
Soviética – uma tragédia para a Humanidade, festejada no Ocidente como vitória
histórica da democracia – atuou como terramoto em partidos comunistas que já
tinham optado por um reformismo transparente. Muitos dirigentes apressaram-se a
renegar o marxismo. Entre os intelectuais a debandada foi imediata; alguns
invocaram a revolução técnico-científica para romper com o passado de
comunistas.
O marxismo foi varrido das
universidades e das livrarias.
Nos EUA, Francis Fukuyama, um
funcionário do Departamento de Estado, anunciou com alegria o "Fim da
História", a morte do comunismo e a vitória do neoliberalismo como a
ideologia para a eternidade.
PRESENÇA DE MARX
A profecia foi, porém,
rapidamente desmentida.
Marx volta hoje a ser editado,
lido e o seu pensamento e obra debatidos. Na Europa, na América, na Ásia, na
África, Congressos e Seminários Internacionais são promovidos para o recordar e
estudar.
Em Paris Jean Salem promove na
Sorbonne desde 2005 um Seminário semanal sobre "Marxismo no século
XXI" em que participam em média 200 pessoas e que é acompanhado na
Internet por dezenas de milhares.
O "Manifesto Comunista"
é reeditado em dezenas de países, tal como as obras de Marx e Engels.
Como as causas que estão na
origem das grandes revoluções não desapareceram e a crise do capitalismo se
tornou estrutural, o renascer do interesse pelo marxismo é hoje uma realidade,
não obstante a perda de influência dos partidos comunistas.
A cada ano aumenta o número de
Congressos e Seminários Internacionais dedicados a Marx e à sua obra. Essas
iniciativas mobilizam porém intelectuais que se situam em quadrantes
ideológicos muito diferentes. Era inevitável. Emmanuel Wallerstein criou a
expressão "os mil marxismos" em comentário a essa heterogeneidade.
Muitos marxianos interessam-se
por Marx numa perspectiva exclusivamente académica. Ignoram a praxis.
Outros, embora afirmando a
necessidade da luta contra o capitalismo e o imperialismo, concentram-se apenas
em questões teóricas, distanciados de qualquer tipo de militância em
organizações politicas.
Não esqueci o comentário ouvido
do historiador Albert Soboul quando um comunista, professor da Universidade de
São Paulo, no Brasil, expressou uma grande admiração pela contribuição do
filósofo Henri Lefèbvre como eminente marxista.
"É verdade – disse – ele
escreveu livros importantes. Mas creio que nunca entrou numa fábrica, temo que
nunca tenha falado com um operário".
Em Encontros sobre Marx
participam também marxianos, sobretudo de tendência trotskista, cujos trabalhos
estão mais orientados para a crítica ao "socialismo soviético" do que
propriamente para a exegese do pensamento do autor de "O Capital".
Recordo o livro de uma historiadora portuguesa que, na tentativa frenética de
responsabilizar Álvaro Cunhal pelo desfecho negativo da Revolução de Abril, o
define como um menchevique português que teria impedido a luta revolucionária
da classe operária…
Atitudes como essas não ocultam
uma evidência: o renascimento do interesse por Marx e o marxismo é um fenómeno
social e político de âmbito mundial, inseparável da consciência de que o
capitalismo está condenado a desaparecer e que a única alternativa é o
socialismo.
Reler os clássicos do marxismo,
sobretudo Marx, tornou-se uma exigência das grandes lutas da humanidade
contemporânea. Para preparar o futuro, como lembra Jean Salem.
O original encontra-se no numero
3 de El Machete, revista de teoria y politica do Partido Comunista do México,
Outubro de 2013 e a versão em português em http://www.odiario.info/?p=3122
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/ .
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