Avicultores integrados à Sadia protestam contra preço e condições impostos pela transnacional.
A reportagem é de Pedro Carrano e publicado pelo Brasil de Fato, 03-01-2012.
"Não há alternativa”, é a frase comum entre muitos trabalhadores, uma vez que a decisão de integrar sua granja à empresa levou ao endividamento, resultado da exigência de modificação constante da infra-estrutura. O sucateamento precoce do equipamento mantém a renda do produtor abaixo dos gastos e do necessário para sobreviver. “Dormimos em prestação”, compara um produtor.
Dia 10 de outubro, cerca de 500 pessoas juntaram-se na praça de Dois Vizinhos (PR), concentrados na Igreja Matriz – coincidência ou não, a data coincide com o 10 de outubro de 1957, quando a cidade principal de Francisco Beltrão foi tomada por seis mil agricultores, no capítulo conhecido como “Revolta dos Colonos”, no sudoeste do estado. Agora, eles gritaram por melhores preços pela unidade de frango, denunciando as condições impostas pela Sadia.
Lideranças do ato calculam que a unidade local da corporação recebe as aves de cerca de 939 famílias integradas, dentre as quais 10% são produtores com bom rendimento, porém o restante têm aviários antigos, “são produtores mais velhos que passam por sérios problemas”, define Cândido da Silva, produtor de Salto Lontra, a 35 km dali. O universo total de granjas integradas à Sadia chega a 10 mil no país.
Em Dois Vizinhos – que se autointitula a “capital do frango” – cada família entrega, no prazo de 28 dias, perto de 50 mil frangos para essa empresa encarregar-se de vender 90% para o mercado externo. Todos os dias, as entregas nos caminhões às portas da empresa somam 505 mil frangos. O peso na economia do sudoeste é inegável. A unidade de abate instalada em Francisco Beltrão (PR), por exemplo, integra 800 aviários e envolve 8% da força de trabalho da cidade.
Naquela mesma manhã do dia 10, poderiam ser mais pessoas reunidas, não fosse a Sadia/BRF ter pressionado uma série de produtores a não aderir ao protesto. A coação já é de praxe. Assim mesmo, esse primeiro grito rompeu uma passividade e revolta contida de décadas. São trabalhadores que, no atual período histórico, o sindicalismo rural não deu conta de organizar, e, no caso, coube ao padre Deoclézio Wigineski, da paróquia local, propor as primeiras reuniões e manifestos.
Os protestos contra a Brasil Foods começaram no dia 12 de setembro, quando os avicultores se posicionaram em frente à unidade da empresa em Dois Vizinhos. “Eles não têm condições de pagar as contas, a grande maioria está devendo bastante no banco e para terceiros”, descreve o padre. A indignação desses produtores era visível em cada palavra de ordem, em cada fala no microfone, as mãos tremendo: “O avicultor não precisa se confessar, já paga todos os pecados”, disse Elenice, avicultora, em um ato que também teve um forte caráter ecumênico.
Organização dos trabalhadores
No interior dos frigoríficos e matadouros, há embriões de organização dos trabalhadores, cuja ação mais importante foi a vitória, em 2010, da oposição ao Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Carnes e Derivados (Sitracarnes), na cidade de Chapecó (SC), em unidade da mesma Sadia, onde há 22 anos não haviam eleições sindicais. Na ocasião, o Ministério Público do Trabalho (MPT) garantiu que, se o trabalho da chapa de oposição fosse criminalizado, a direção da Sadia seria acusada de formação de quadrilha, por estar vinculada à antiga direção do sindicato.
A Brasil Foods é resultado da tentativa de fusão entre a Sadia e a Perdigão, no pico da crise de 2009, ação recentemente questionada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), alegando que a concentração econômica da empresa resultaria em aumento de preços de alimentos e da inflação. Isso gerou, por um só dia, em julho de 2011, interrupção das ações do grupo na Bovespa. Hoje, o controle das ações ordinárias da BR Foods pertence sobretudo ao Fundo Petros e Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil, que somam 22% das ações.
Exploração dentro e fora
As condições de trabalho na criação e também no abate dos animais começam a enfrentar uma crítica de entidades, espantadas com superexploração nesses locais de trabalho. Basta ver o documentário Carne e Osso, produzido pela Repórter Brasil (janeiro de 2011), revelando as condições de trabalho no interior de frigoríficos no Sul e Centro-Oeste do país. A película mostra que o setor emprega 750 mil operários, 500 mil no abate de aves. O número podia ser bem maior, pois somente um trabalhador realiza por minuto de 80 a 120 movimentos para desossar frangos, sendo que uma média de 30 movimentos seria um limite seguro para evitar doenças do trabalho. Um operário de frigorífico está sujeito a 743% mais chances de desenvolver doenças nos nervos e músculos do braço que outro trabalhador. Rotatividade e doenças nesse ramo são inevitáveis.
Certo é que, no Paraná, a falta de denúncias coincidia com a falta de ferramentas para reorganizar os trabalhadores, que passam a se movimentar. “É uma ruptura que pode se dar (nesses locais) a partir de dentro, e não das instituições. A organização é muito difícil, e acontece depois que eles deixam a fábrica. Em Francisco Beltrão (PR), há a organização dos lesionados pela Sadia”, afirma Valdir Duarte, da Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural (Assessoar). No caso dos avicultores integrados, trata-se de um sujeito político pressionado pela intensificação de produção e exportação de carnes, mas ainda sem experiência de luta.
Pedra de Sísifo
A primeira pauta foi construída baseada nos preços dos lotes e nas condições de produção. Os benefícios e direitos trabalhistas ainda aparecem de forma tímida na luta dos avicultores, que não têm acesso a férias remuneradas, carteira de trabalho assinada, como observa o coordenador no Paraná do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Robson Formica, presente ao ato, entre diferentes organizações e sindicatos que prestaram solidariedade. “Não há diferença para a exploração da indústria, a diferença é que esses trabalhadores não tem cartão-ponto”, afirma.
O produtor Paulo Furlan está no ramo há vinte anos. O que o preocupa é o alto investimento pessoal, o baixo retorno e a necessidade de cumprir metas. Produtores calculam o endividamento em torno de 80 mil, o que faz da entrada nessa cadeia produtiva um verdadeiro cárcere para eles, onde quem entra “nunca mais sai”, como afirma Furlan. “É muito investimento. Não consigo comprar uma casa, não consigo. A despesa é alta. E a esperança é sempre o próximo lote de vendas”, diz, admitindo que a desigualdade no pagamento da Sadia aos produtores gera a expectativa de que é possível ganhar melhor, tal como no mito grego de Sísifo – carregando a pedra ao topo de montanha até que ela desmorone. Os produtores acusam a Sadia de não assumir erros na produção, ao passo que eles são penalizados quando não cumprem a meta ou apresentam a mercadoria fora dos padrões exigidos pela empresa. “Na região é um monopólio da Sadia/BRF. Isso submete agricultores, uma vez que a proposta inicial da empresa é ótima. Mas, com o aviário, a proposta não responde mais. Muito complicada essa questão de vender a imagem que não é verdadeira”, critica o padre Wigineski.
Aléssio Antonio Cervinski tem três filhas, que o ajudam nas lidas da propriedade. As jovens não querem ficar nessa vida e sonham tomar outro rumo. Ele sacode a cabeça e admite que mesmo com o trabalho tomando, literalmente, as 24 horas do seu dia, não ganha o suficiente para se manter. “Nós somos escravos”, afirma outra produtora, chamada Elenice. Por sua vez, Rosane Dorigoni e Pedro Luiz Dorigoni, que produzem desde 1986, têm que diversificar outras atividades para sobreviver. O aviário na verdade acaba sendo apenas uma pedra no meio do caminho.
No dia 10 de outubro, os avicultores ainda não foram à frente da Sadia para paralisar os caminhões, o que estava previsto na convocatória aberta do ato. A empresa, por intermédio da Igreja, resolveu negociar e os trabalhadores por ora se apressam em refundar uma Associação de Produtores - a antiga já estava fora de movimento há muito tempo e não dava conta dos seus interesses.
Agronegócio e submissão
A mesoregião de Francisco Beltrão, sudoeste do Paraná, é rica em memórias de lutas, como foi a Revolta dos Colonos (1957) quando famílias de colonos e descendentes de imigrantes mantiveram, armas em punho, a posse de suas terras. Hoje a produção local orbita em torno das unidades da Sadia. Há uma tensão entre a agricultura camponesa e familiar e a constante proletarização determinada pelo Capital, afirma Valdir Duarte, da Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural (Assessoar).
A maneira como as empresas do agronegócio conquistam os agricultores locais, de acordo com Duarte, dá-se por meio das empresas agroveterinárias, cujos técnicos estão em contato diário com o agricultor, para convencê-lo a implantar tal modelo. “É por onde chegam a Syngenta, Monsanto, uma estratégia que não é apenas local. Não há uma elite local capaz de um projeto próprio, seu projeto é desigual e combinado com as grandes transnacionais. É a exportação”, sintetiza.
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