Leonardo Wexell Severo
Daniel Pascual Hernandez, coordenador do Comitê de Unidade
Camponesa
Como o Comitê de Unidade Camponesa analisa o momento de embates no
campo guatemalteco?
Temos altos índices de
concentração fundiária, o que torna a luta pela terra na Guatemala bastante
similar à do Brasil e do conjunto da América Latina. Do ponto de vista agrário,
o capitalismo se instalou em 1871, com o café, o algodão e posteriormente a
banana, matérias-primas para exportação. Esse monocultivo trouxe uma
particularidade: a concentração de terra com a opressão do indígena. A lei de
terras começa entregando o território ao invasor, ao colonialista, deixando
cinturões para que os indígenas não se sublevassem. Houve um período de
avanços, de 1944 a 1954, a década democrática, sob os governos de Juan José
Arévalo e Jacobo Arbenz Guzmán, mas logo se efetiva a invasão estadunidense.
A contrarrevolução armada e financiada pela United Fruit.
A invasão se dá a partir das
grandes extensões de terra que a United Fruit Company tinha na Guatemala. A CIA
e os mercenários nacionais orquestraram uma contrarrevolução em 1954. Isso faz
com que surja a guerrilha e o intenso processo de luta armada que vai de 1963
até 1996, quando há um novo saque, com a apropriação de terras se dá pelos
altos mandos militares, que queriam ser também um poder político e econômico.
Assim é que temos hoje num país pequeno, de 109 mil quilômetros quadrados, 75 a
80% da terra concentrada em mãos de 10% da população, um reduzido número de
famílias descendentes de europeus. Há uma mescla de latifundiários alemães,
espanhóis, alguns belgas, com sobrenomes parecidos.
E como vivem os trabalhadores destas fazendas?
Estão submetidos a uma situação
característica de colonos. Vivem em condições desumanas, em moradias precárias,
com falta de acesso à água, à educação e à saúde. Por não terem terra, aceitam
essas lamentáveis condições. Esses trabalhadores começaram a ser expulsos, a
sofrer com as demissões massivas e os deslocamentos forçados impostos pelos
latifundiários bananeiros nos estados do Sul e há uns seis ou sete anos, no
Norte, pelos fazendeiros da região mais próxima a Belize. Há um processo de
mecanização das lavouras e de reconcentração da terra para monocultivos.
Quais os problemas pela frente?
A questão dos monocultivos salta
aos olhos, assim como a lógica de construção de infraestrutura de rodovias,
portos e aeroportos para servirmos à logística das economias europeias e
asiáticas. Por isso a criação de um corredor de rodovias interoceânico, de um
corredor seco entre os portos e aeroportos do Atlântico e do Pacífico que não
leva em conta o interesse nacional. O governo está radicalizando na aplicação de
todos os programas neoliberais, por meio de concessões e privatizações, e tem
assinado vários tratados contrários à nossa soberania. Recentemente a Guatemala
ratificou o Acordo de Associação com a União Europeia, que leva a um plano de
investimentos e a um tratado comercial que subordinam completamente a nossa
economia. Assim, se a América Central tem muitas nascentes, iniciam um projeto
de construção de hidrelétricas, com os rios programados para serem instrumento
do crescimento das multinacionais.
E o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos?
É como um plano B depois do
fracasso da Área de Livre Comércio das Américas. Ao não poderem fazer a Alca,
buscam acordos individuais. Já existe o Nafta com o México, que envolve os três
países do Norte, e precisavam um TLC com
a América Central. Fizeram um “acordo” por partes e é nisso que estamos
submergidos, na imposição de um modelo de intercâmbio onde somos nada. A
América Central representa 5% da importação dos EUA, não impactamos na economia
real, somos tão somente nicho de mercado para os seus produtos. Nesses oito
anos de retificação do TLC o tratado foi vendido como solução para os problemas
do desemprego, da fome, da falta de desenvolvimento. Diziam que se assinássemos
iria haver investimento estrangeiro, emprego, que entrariam produtos mais
baratos. A oligarquia vendeu o TLC como a cura para todos os males.
Esta foi a propaganda. E o que aconteceu de verdade?
As farsas e mentiras dos acordos
comerciais saltam à vista. Há cada vez mais desemprego. Isso implica em cada
vez maior migração de irmãos e irmãs para a América do Norte (onde já vivem 1,6
milhão de guatemaltecos). Quando houve escassez e a população queria que se
importasse milho, frango ou açúcar para que os preços baixassem, a oligarquia aprovou
dispositivos e instrumentos jurídicos para deter esse processo e manter suas
margens de lucro.
Foi feita uma mini reserva de mercado, mas submetendo o conjunto da
economia à engrenagem neocolonial, à lógica da exportação de produtos primários
a baixo custo e importação de manufaturados, a valores elevados.
Esse é o mais grave perigo que
temos com o nefasto acordo assinado com a União Europeia, que impõe condições
ainda mais desvantajosas do que as firmadas com os EUA. Tomaram nossas
matérias-primas e agora não temos mais sequer o direito de dizer que esse café
ou esse cacau é da Guatemala. Isso vale até mesmo para o cardamomo [planta
aromática da família do gengibre, com um toque de menta], do qual somos o
terceiro maior produtor mundial e que é muito comprado pelos países árabes.
Dizem que o melhor chocolate vem da Bélgica, da Suíça ou de algum país europeu,
quando o cacau é um produto nosso, da América Latina. O mesmo vale para o
etanol e para o azeite de palma africana. Como na Guatemala não conseguimos
fazer o processamento, não temos as fórmulas para as mesclas do combustível,
vendemos a matéria-prima ao estrangeiro. A outra parte do problema é o
investimento, a licença, pois dá liberdade às empresas que obtenham as
concessões para a construção de hidrelétricas, produção de petróleo e
agrocombustíveis, para a exploração das minas de ouro, zinco, prata, níquel. É
isso o que está ocorrendo. As empresas são a petroleira Perenco,
anglo-francesa; a ENI, da Itália; a cimenteira Holsing, da Suíça; há forte
atuação financeira do Fundo Petroleiro de Noruega, com figuras jurídicas
criadas no Canadá. Esse grupo está se instalando na Guatemala com a maioria das
embaixadas se convertendo em escritórios. É na presidência que está o butim de
guerra, o centro das negociações das concessões e privatizações do patrimônio
público para as multinacionais.
A presidência guatemalteca foi reduzida a um balcão de negócios?
Exato. A realidade é que o modelo
semi-feudal se mantém, não há uma atualização do capitalismo nem na agricultura
nem nos outros setores produtivos que mantêm uma oligarquia das mais
retrógradas e envelhecidas. A economia se vê como a “finca” (fazenda) ou a
“maquila” (empresa que importa peças e componentes da matriz estrangeira para
que os produtos - montados por operários que trabalham mais e recebem menos –
sejam exportados). Quem ainda continua dizendo como se faz é o dono da terra,
da fábrica, do comércio e dos bancos. É gente que não vê as leis como um corpo
para ordenar a vida social, mas para submeter ao seu negócio todas as
estruturas jurídicas. Seguem vendo a legislação como extensão dos seus
interesses, que manobram e moldam à sua maneira. Colocam a institucionalidade
do Estado a seu serviço. Há uma oligarquia que não quer investir nem ofertar, que
prefere ver as pessoas sem poder aquisitivo.
Uma visão que bloqueia o desenvolvimento do próprio mercado interno.
Não há nenhum pensamento de
investir, de gerar emprego e renda, que permita que a população vire
compradora. Por isso seguem utilizando a repressão como ferramenta para a
imposição desse modelo excludente. Para eles, a propriedade privada é
sacrossanta, é superior ao bem comum. De acordo com essa mentalidade, ver
pessoas reclamando direitos constitucionais ou inscritos em convenções
internacionais é como ter uma revolução pela frente. Reclamar direitos é visto
como sublevação. Mas o que se está reclamando são direitos humanos básicos,
reconhecidos. Obviamente não é a primeira vez que vemos tal repressão. Vieram
com a espada e a cruz. Ou aceitavas o invasor e sua religião ou te matavam.
Assim assassinaram, arrasaram os povos originários. E na colônia veio a escravidão,
a submissão total. Quando houve a rebelião, vieram com a repressão
contrainsurgente. Agora estamos num processo de repressão neoliberal. Como não
puderam cooptar, neutralizar ou convencer a população, os sindicatos e as
organizações populares, tentam impor um modelo econômico de tratados
comerciais, extrativos, de reconcentração da terra, de deslocamento forçado dos
povos originários.
Como avalias a condenação do general e ex-presidente Ríos Montt por
genocídio?
Desde a chegada dos invasores, foram
inúmeros os levantes. Nos 36 anos de guerra interna o genocídio se mede com 250
mil mortos e desaparecidos, 444 aldeias arrasadas, riscadas do mapa, com
centenas de milhares de viúvas e órfãos por todo o país e um milhão de
refugiados no México. O julgamento de Ríos Montt é um ato histórico, carregado
de simbolismo, e que pode ser um divisor de águas. O primeiro genocida em 520
anos de história que é processado na América Latina pelas mesmas leis
ocidentais. Foi um ato heroico o que realizaram as mulheres sobreviventes dos
estupros múltiplos, aquelas que foram crianças e se encheram de coragem e
energia para enfrentar, para encarar o genocida e falar do seu sofrimento.
Um acerto de contas com o passado.
Mais do que um ato de justiça com
o passado, este é um acerto com o futuro. Para que nunca mais ocorram
assassinatos, torturas, sequestros, estupros e desaparições forçadas. Neste
momento ainda há milhares de corpos não exumados. A Guatemala inteira é um
imenso cemitério clandestino, com milhares de fossas. Precisamos recuperar
esses restos mortais porque a espiritualidade maia, a espiritualidade indígena,
necessita a dignificação dos mortos. É um ato que transcende o país, que
dialoga com a memória histórica. Não tem a ver com que se cumpra ou não com a Justiça,
mas com a humanização, com a dignificação do humano. Sentimos que há juízes
para nos dar esperança, que é possível pensar que se possa fazer justiça. Não
percebíamos que pudesse haver tal possibilidade. Esses magistrados dão um sabor
diferente à nossa existência frente a um sistema tão corrompido e cheio de
impunidade. Eles fazem com que voltemos a ter confiança no país, a ter orgulho
de ser guatemaltecos, que a maior parte da população, indígena e camponesa, se
sinta revigorada no seu nacionalismo, na sua consciência, no seu pensamento.
Por que a maioria nunca foi levada em conta? Porque a repressão e os massacres
têm traços muito semelhantes aos do colonialismo, vendo os índios como seres
sem alma. Por isso foram mortos pelos filhos ou netos dos primeiros invasores,
foram assassinadas independentemente se eram crianças ou mulheres, grávidas ou
idosas.
De onde veio tamanha barbárie na ação militar contra a oposição à
entrega do país?
A aliança da oligarquia com o
exército teve o forte apoio da CIA, dos Estados Unidos e de Israel. Aqui há
muito armamento israelense. O fuzil que se usa, o galil, é de produção
israelita, e o segundo armamento, o M16, é produzido pelos EUA. O que passou no
tempo da guerra? Foi solicitado ao Exército, doutrinado e treinado para
reprimir, que governasse. Por isso houve as ditaduras militares, quando não
foram tão respeitosos com as decisões da oligarquia, e passaram a enriquecer.
Aqui o Exército teve banco, equipe de futebol e estádio, o melhor de todos os
hospitais, o Instituto de Provisão Militar, acumulando muito poder. Assim é que
o atual presidente Otto Pérez Molina não quis ser apenas um servidor da
oligarquia, mas parte do negócio. É aí onde vemos certas fricções para ver como
fica a divisão dos percentuais. Agora estão querendo salvar a pele dos altos
mandos do Exército que dirigiram as políticas de repressão.
Há uma disputa para ver quem serve mais ao estrangeiro.
A oligarquia está submetida
política e economicamente aos Estados Unidos. Há momentos que o mais submisso é
o exército, outros que é mais a oligarquia, mas ambos se necessitam. Como não
há o surgimento de um novo mando militar, jovem, nacionalista, temos um grande
problema, diferente de países onde há setores que se confrontam com o império.
Há uma intencionalidade de manutenção do status quo, das condições políticas,
econômicas e sociais. Seguimos sendo um país rural, com cerca de 70% da
população no campo, onde os povos indígenas chegamos a 60%. Há a questão
geopolítica do narcotráfico, da inserção dentro das estratégias militares
estadunidenses. Seguimos sendo um instrumento para frear a migração, para
barrar o tráfico de armas, de drogas e pessoas. Então temos esse problema: em
vez de nos beneficiarmos da proximidade com os EUA, estamos em desvantagem. Daí
a importância da unidade dos nossos países e povos. De muita união.
Fonte: Comunica Sul
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