Desde a semana passada, as
reivindicações dos professores da rede pública no Rio de Janeiro ganharam as primeiras
páginas dos jornais e capas dos portais de notícias. Após uma ocupação dos
professores na Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro ser
desalojada à força pela PM, a categoria iniciou um acampamento em frente à
ALERJ para dar mais visibilidade à greve, que já dura mais de dois meses. O
motivo de a pauta estar, digamos, “em cartaz” no espetáculo midiático se deve
ao sensacionalismo, explorado a partir dos conflitos entre manifestantes e
policiais, que ocorreram nos últimos dias 4 e 7 de outubro, no Rio e também em
São Paulo, durante ato de solidariedade aos professores fluminenses.
Sensacionalismo ofusca agenda de lutas
A excessiva cobertura destes
confrontos pontuais, em muitos casos proposital, acabou ofuscando a organização
e a agenda de luta dos professores, que começaram muito antes destes últimos
atos e cuja relevância para o desenvolvimento brasileiro é infinitamente
superior do que qualquer outra abordagem oportunista.
O acampamento na ALERJ foi
estabelecido com o objetivo de dar mais visibilidade à greve dos professores,
já que a mesma foi construída pelas bases do professorado, uma vez que
enfrentou oposição da direção sindical e, além disso, tem enfrentado diversas
ofensivas por parte do próprio governo do estado do Rio de Janeiro. “Esta é uma
greve construída pela base da categoria porque o sindicato desde o início do
ano está contra”, afirmou João Paulo Lima (nome fictício)*, 30, professor de
sociologia em Duque de Caxias. “O governo não quer negociar com a gente de jeito
nenhum. Diz que a nossa greve é ilegal, entrou com várias ações na justiça para
impedir a nossa greve, desde multas até a ilegalidade da mesma, mas conseguimos
com nossos recursos jurídicos vencer todas essas etapas. Mesmo assim, o governo
não negocia conosco de jeito nenhum, então a gente optou pelo acampamento na
ALERJ como uma forma de radicalizar o processo, dar visibilidade à greve e
impulsionar a negociação”, completou.
Mesmo com o acampamento, o
governo continua não querendo negociar com os professores e, ao que parece, as
necessidades de cortar gastos do estado têm se sobreposto às demandas por
educação da população fluminense.
Na última quarta-feira, dia 9 de
outubro, foi decidido em assembleia da categoria, realizada no Clube Municipal
da Tijuca (zona norte do Rio), que a greve irá continuar. Paralisados desde 8
de agosto, os professores exigem uma verdadeira revolução na rede pública de
educação. Entre diversas pautas colocadas pelo professores, como, por exemplo,
a instauração de melhores salários, planos de carreira e a compra de livros e
materiais escolares, atualmente escassos no sistema, a precarização do ensino e
do trabalho representada pelo plano de metas do governo é o principal foco de
reivindicação. Professores denunciam que a nova medida do governo se justifica
sob uma razão de corte de gastos e que isso, além de prejudicar questões
pedagógicas, acirra a elitização e a mercantilização do ensino, tendendo a
piorar ainda mais as condições de trabalho dos professores e outros
funcionários da educação.
Este plano de metas é imposto
pela Secretaria de Educação às escolas. Para cada escola, é proposta uma série
de metas a serem atingidas, como por exemplo aumentar o índice de aprovações em
relação aos anos anteriores – e, para cada uma dessas metas atingidas e
aprovadas, seria dada uma bonificação aos profissionais responsáveis pelo
cumprimento das mesmas.
“O plano de metas é uma aplicação
do modelo toyotista na educação, isto não passa de um modelo mercadológico que
está tentando economizar custos da administração pública e ao mesmo tempo criar
uma ideologia de mercado dentro do sistema de educação público”, explica
Gustavo Silva, 35, professor de sociologia em São João do Meriti. Para ele, o
plano de metas basicamente é feito a partir da manipulação de números e dados
estatísticos.
“Tentam manipular índices
econômicos para forjar uma suposta melhoria na educação. Por exemplo, podem
pegar índices de aprovação escolar para dizer que houve uma melhora no ensino,
o que não é necessariamente verdade. Este índice de aprovação resulta em uma
bonificação para os professores responsáveis pelo suposto aumento do índice.
Então, o que o governo faz? Ele te diz que, se você bater uma meta de
aprovação, você ganha bônus, o que gera uma espécie de aprovação automática
forçada, que você faz para garantir o tal bônus que pode ser financeiro ou
relacionado a folgas e férias. E depois eles usam as estatísticas para dizer
“tá vendo? A gente diminuiu a reprovação na rede’”, conta Gustavo.
“É uma lógica empresarial e
meritocrática que aprofunda não só a privatização da educação pública, mas a
precarização das condições de trabalho dos profissionais, como também as condições
de ensino e aprendizado de professores e alunos. Esse plano, como o nome já
diz, visa atingir metas. Metas essas que a gente entende que a educação não tem
como lidar por questões pedagógicas”, criticou Maria Aparecida, 28, professora
de sociologia na rede estadual desde 2010. “A gente não tem mercadorias, a
gente tem alunos, e são alunos que têm questões cognitivas e pedagógicas que a
gente tenta desenvolver dentro desta infraestrutura muito precária. Essas metas
não dialogam em nada com as demandas cognitivas e pedagógicas. Então, são metas
que não condizem com a realidade e ainda fragmentam a categoria, pioram o plano
de carreira do professor e sucateiam as nossas condições de trabalho”,
denunciou.
E para piorar ainda mais o quadro
desse sistema de educação em metástase, ainda há a situação de funcionários
como, por exemplo, os merendeiros, serventes, auxiliares etc. “Todos são
terceirizados e vivem sob condições precárias de trabalho. Sem leis
trabalhistas, sem direito a férias, sem adicional de periculosidade, enfim, não
têm direito a nada”, conta João Paulo.
Ainda há a questão do
planejamento de aulas e atividades, que, segundo os profissionais, mesmo com
uma lei federal que garante tal tempo ao professor, o governo do estado não a
cumpre. Assim, eles não recebem pelas horas de preparo de atividades, o que muitas
vezes pode comprometer a qualidade do ensino, por razões mais do que óbvias.
Uma arraigada construção histórica
Para os professores entrevistados
pela reportagem do Correio da Cidadania, essas questões vão de encontro direto
a uma pauta ainda mais antiga e encravada na estrutura social do Brasil: a
elitização do acesso à educação. “todos sabemos que governo nenhum prioriza a
questão da educação pública. Nós damos aulas para os filhos da classe
trabalhadora e, no Brasil, a gente vê, pela construção histórica do ensino
público no país, que até o nível médio tem o ensino público todo voltado para a
classe pobre, enquanto que o nível superior é voltado à classe rica. E até hoje
temos essa visão de que o rico tem acesso à educação particular”, explica
Gustavo. Para ele, há um elemento histórico importante a ser traçado. “Se
pegarmos os primeiros projetos de universidade no Brasil, eles tinham o
objetivo de formar os filhos da classe dominante. As primeiras faculdades de
medicina e direito vieram para formar os filhos dos proprietários, já que antes
eles tinham de ser mandados para o exterior para estudar. Assim, com a criação
da universidade brasileira, economizou-se esse recurso. Ou seja, o Estado passa
a investir numa universidade para que os filhos da classe dominante possam
estudar aqui, filhos estes que, por sua vez, eram formados no ensino básico por
escolas particulares”, definiu.
Para Maria Aparecida, as escolas
particulares também entram nessa lógica. Se, por um lado, o ensino nas escolas
públicas é precarizado por tantos fatores já citados aqui, por outro lado, o
ensino privado é empobrecido pelas exigências do mercado, uma vez que forma
alunos com o intuito de simplesmente responder às provas de vestibulares e
concursos com sucesso. “Ensinamos os alunos nas escolas particulares, ditas de
excelência, a fazerem provas para passarem no vestibular, no ENEM e aí você
cria um funil. Pela educação pública ser de má qualidade, os alunos da rede
pública ficam alijados do processo, nesse funil que é a educação superior. E
daí podemos analisar também o ensino superior, cada vez mais especializado, uma
faceta do imperialismo e dessa megaespecialização. Podemos dar o exemplo do
nosso curso de ciências sociais, que há uns anos atrás era um curso com três cadeiras
principais: antropologia, sociologia e ciência política. Com o REUNI, com a
verba do REUNI, com a promessa de mais verbas para a educação, de maior
investimento, de mais democratização, o que aconteceu aqui com o nosso curso
foi a separação dessas três cadeiras. Foi criado um vestibular para
antropologia, outro para sociologia e outro para ciência política. Portanto,
vemos como a lógica do mercado de trabalho está passando por cima até de uma
questão científica”, explicou.
No final das contas, quem acaba
se aproveitando da indústria do vestibular é o ensino privado. Se a abertura de
novos cursos, em consequência do sucatemento de outros antigos, abre mais
vagas, também abre mais competição e disputa entre as instituições privadas de
ensino fundamental e médio sobre a colonização de tais vagas. E às instituições
privadas de ensino superior cabe a disputa pelo exército de reserva do
vestibular. “São os filhos da classe trabalhadora os que mais precisam de uma
formação de qualidade, à qual não têm acesso. Estamos criando uma grande
quantidade de desempregados. Estamos educando uma grande quantidade de
trabalhadores precários que no futuro vão se tornar camelôs, ambulantes,
empregadas domésticas, atendentes de telemarketing etc. Não quero desqualificar
de forma alguma estes empregos, mas sabemos que não deveria ser assim. As
pessoas que acabam indo para estas áreas poderiam muito bem se tornar
professores, enfermeiros, médicos, técnicos, enfim, profissões que estão em
falta no nosso quadro social”, concluiu João Paulo.
Pensando em todas essas pautas e
nesse histórico de lutas, na última assembleia da categoria foi decidido que um
novo ato pela educação pública tomará as ruas do Rio de Janeiro na próxima
terça-feira, dia 15 de outubro (exatamente o dia do professor), com
concentração às 17h, em frente à Igreja da Candelária. O Ato promete ser maior
do que o anterior e mais de dez mil pessoas já confirmaram presença através das
redes sociais.
Black Blocks
Um dos detalhes dessa luta a
serem comentados é a simpatia que os mascarados do Black Block despertaram
entre os professores. Pilares da cobertura sensacionalista dos velhos veículos
monoculturistas da imprensa nacional, os grupos táticos anarquistas conhecidos
como Black Blocks, desde suas primeiras aparições, foram taxados de vândalos,
baderneiros e até de infiltrados no movimento, desprovidos de ideais políticos
e cuja única vontade era a da destruição de vidraças e de viaturas. Ao que
parece, tal imagem mudou, ao menos entre os professores.
É bem verdade que a falta de
respeito do Estado ao negar o diálogo com os professores e a brutalidade
excessiva da moribunda polícia militar brasileira contra professores e
estudantes contribuíram e muito com essa guinada na opinião pública. “Quando a
polícia me bateu, o Black Block me defendeu”, declarou uma professora na sua
página do facebook. Manifestações de apoio e gratidão como a desta professora
se tornaram extremamente comuns e viscerais, a ponto de o próprio Sepe
(sindicato dos professores) declarar apoio incondicional aos Black Blocks na
assembleia que definiu o ato do dia 15. Alex Trentino, coordenador geral do
Sepe, afirmou que recebeu relatos de muitos professores afirmando terem sido
protegidos pelos mascarados dos abusos da PM e que, além disso, ainda recebeu
outros relatos de atendimentos de primeiros socorros feitos por membros do
Black Block a professores feridos durante a repressão.
Essa união entre Black Block e
professores só prova que a solidariedade e a luta podem se sobrepor a qualquer
tentativa midiática de cooptação de pautas. Afinal, o que é mais chocante: ver
o sistema de educação devastado ou alguns vidros quebrados de instituições
bancárias, que a cada ano aumentam os seus lucros já questionáveis, sem
estancar demissões? Aliás, os bancários encontram-se em greve. Em meio a todo
esse quadro, o próximo ato promete avançar na pauta. Então, turma, a próxima
aula, na terça-feira, será sobre cidadania. Não esqueçam de fazer o dever de
casa.
*Todos os professores entrevistados aparecem nesta reportagem com nomes
fictícios, por questão de segurança.
Raphael Sanz é jornalista.
fonte: Correio da cidadania
fonte: Correio da cidadania
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