Quem a si próprio elogia não
merece crédito”.
Sabedoria popular chinesa
Valerio Arcary-
A análise crítica do significado
dos dez anos de governos dirigidos pelo PT em uma ampla coalizão que incorporou
inúmeros partidos da classe dominante é complexa. Primeiro, antes de tudo,
porque não se deve esquecer que a eleição de um líder de origem operária como
Lula foi uma experiência inusitada na história do Brasil. Seu impacto é chave
para contextualizar o prestígio dos governos destes dez anos. O governo Lula
encerrou o mandato com elevada aprovação popular, acima de 80% nas pesquisas de
opinião, mas este critério não é suficiente para um juízo em perspectiva
histórica.
Segundo, porque ainda que o
governo tenha sido presidido por um líder de origem operária, isso não é
suficiente para provar que tenha governado para os trabalhadores. Na verdade, o
governo Lula até 2010, e Dilma, desde então, admitem que não o fizeram, e
insistem em que governam, indiscriminadamente, para todos. Mas isso tampouco é
correto. Lula foi mais honesto que seus publicitários quando confessou, em tom
de rancor, que os grandes capitalistas nunca ganharam tanto dinheiro quanto
durante os seus dois mandatos e, por isso, eram uns ingratos. Uma análise
marxista não pode escapar às caracterizações sociais, ou seja, de classe, dos
governos. De resto, qualquer análise histórica séria precisa enfrentar este
desafio. Os governos do PT foram governos a serviço da preservação da ordem
capitalista no Brasil. Embora tenham sido governos de colaboração de classe na
forma, foram governos burgueses no conteúdo. Não surpreende que não tenham enfrentado
senão uma oposição retórica dos partidos orgânicos do grande capital, como o
PSDB.
A luta pela emancipação dos
trabalhadores tem sido a maior das forças de impulso da lutas de classes
contemporânea. O projeto socialista foi o seu programa, com todas as
vicissitudes do estalinismo e da adaptação da socialdemocracia à gestão do
capitalismo. No Brasil do início dos anos 80, o PT abraçou esta simpatia quase
intuitiva da classe trabalhadora pelo igualitarismo social. Lula foi o
porta-voz desta esperança.
Um presidente com origem social
na classe trabalhadora em um país capitalista periférico, apenas uma década e
meia depois da restauração capitalista no Leste Europeu, foi um acontecimento
atípico. Em outras palavras: do ponto de vista da dominação capitalista foi uma
anomalia. Mas não foi uma surpresa. A trajetória do Partido dos Trabalhadores
como partido de oposição eleitoral, em pouco mais de duas décadas, credenciava
Lula diante do povo.
Mais importante, todavia, Lula
conquistou a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular, e dos
trabalhadores dos setores mais organizados: uma força militante de algumas
centenas de milhares de ativistas motivados. A proeminência de Lula foi uma
expressão da imponência social do proletariado brasileiro e, paradoxalmente, ao
mesmo tempo, de sua impressionante inocência política. O proletariado o
projetou quando assumiu o protagonismo da luta final contra a ditadura,
deslocou a velha burocracia dos sindicatos e apoiou a construção do PT e da CUT.
Mas a classe trabalhadora, apesar
de uma vanguarda ativa que pressionou seriamente o PT e a CUT durante uma
década de ascensão nos anos 1980, não foi capaz de manter o controle sobre as
suas organizações e os seus líderes, depois da inversão da correlação de forças
entre as classes, em 1995.
A derrota da greve dos
petroleiros em 1995, um dos setores mais fortes do proletariado, incidiu na
consciência de forma devastadora. Na hora do refluxo das lutas sindicais, o
impacto da estabilização da moeda e da vitória eleitoral burguesa, com a posse de
Fernando Henrique Cardoso, abriu uma etapa de estabilização do regime
democrático, dez anos depois do fim da ditadura. Sem vigilância, o aparato
burocrático dos sindicatos agigantou-se e se deformou de forma irreconhecível,
e o aparelho do PT se adaptou ao regime.
Carismático, Lula uniu um dom
excepcional de oratória ao gênio político. Líder intuitivo, demonstrou
surpreendente capacidade de improvisação em situações adversas. É verdade que
Lula conquistou a sua liderança assumindo o papel de principal porta-voz das
reivindicações populares nos anos 1980/90. Sua ascendência foi uma das
refrações da acelerada urbanização e industrialização. Foi, também, expressão
de proletariado jovem, concentrado, sem experiência política, recém-deslocado
dos confins miseráveis das regiões mais pobres e semi-letrado (1).
Não obstante, seria superficial
concluir que o lugar que Lula ocupou nos últimos trinta anos foi resultado
somente de seus talentos ou da sorte. A posição privilegiada de porta-voz das
aspirações populares foi produto, também, do reforço de sua figura pela própria
burguesia, quando ficou claro, durante a Constituinte de 1986/88, que não era
uma ameaça ao regime democrático em formação. Foi favorecido pela mídia
burguesa em alternativa a Prestes e Brizola, por um lado e, também, talvez
sobretudo, pelo perigo da influência das tendências revolucionárias internas do
PT, muito ativas nos anos 80.
A classe dominante brasileira
contribuiu para o reforço de sua autoridade oferecendo-lhe uma visibilidade política
crescente diante de seus potenciais rivais. A burguesia brasileira confirmou a
sua habilidade política assimilando Lula e o PT como a oposição eleitoral que o
regime democrático necessitava como válvula de escape.
Lula foi, portanto, conscientemente
poupado, sobretudo depois de chegar ao poder, de ataques diretos mais
contundentes, o que reforçou sua imagem. O seu amadurecimento foi elogiado
pelas lideranças burguesas mais lúcidas que confessaram respeito, e até
gratidão, pela função que cumpriu como garantia da segurança do regime
democrático. Já tinha demonstrado nas prefeituras, governos estaduais e no
Congresso Nacional que era uma oposição ao governo de plantão, mas não era
inimigo do regime democrático-liberal de tipo presidencialista que vingou
depois de 1985.
Não era sequer inimigo
irreconciliável do estatuto da reeleição, uma deformação anti-republicana e,
especialmente, reacionária. A burguesia já admitia, desde 1994 pelo menos, que
o PT pudesse ser um partido de alternância disponível para exercer o governo em
um momento de crise econômica e social mais séria. Lula e Zé Dirceu assumiram,
publicamente, mais de uma vez, compromissos com a governabilidade das
instituições, exercendo pressões controladoras sobre os movimentos sociais sob sua
influência. Lula não foi um improviso como Kirchner. Lula não foi uma surpresa
como Evo Morales. Lula não foi considerado um inimigo como Hugo Chávez.
Se considerarmos a evolução
política da América Latina, na primeira metade da última década, parece
incontroverso que os regimes democráticos viram as suas instituições
questionadas pelas mobilizações de massas, seriamente, pelo menos em alguns dos
mais importantes países vizinhos. Dez presidentes não completaram seus
mandatos. Entre 2001 e 2005, quatro países da América do Sul estiveram em
situações revolucionárias. Os governos cúmplices do ajuste recolonizador na
América Latina dos anos 90 se desgastaram até a queda, ao ponto de vários
ex-presidentes – Salinas do México, Menem da Argentina, Cubas do Paraguai,
Fujimori do Peru e Gonzalo de Losada da Bolívia, além dos golpistas da
Venezuela – terem sido presos, se encontrem foragidos ou à espera de
julgamento.
O governo Lula dobrou-se diante
do imperialismo e da burguesia brasileira como produto de uma estratégia
política consciente. Lula foi um interlocutor do governo norte-americano para
os governos venezuelano, boliviano e equatoriano, elogiado pela sua responsabilidade
por ninguém menos do que Bush. Sua influência moderadora sobre Chávez, Evo
Morales e Correa foi reconhecida por Washington, pelos governos europeus e até
pelas burguesias locais. O PT beneficiou-se, em 2002, de um crescente mal estar
social que vinha se acumulando desde o início do segundo mandato de Fernando
Henrique Cardoso.
O governo Lula é história do
tempo presente. É preciso distinguir, portanto, o que foi o governo Lula das
percepções que ele deixou. O crescimento econômico entre 2004 e 2008,
interrompido em 2009, porém, recuperado com exuberância em 2010, foi inferior à
média do crescimento dos países vizinhos, mas a inflação foi, também, menor. A
média do crescimento do PIB durante os anos do governo Lula foi de 4% ao ano,
inferior ao crescimento da Argentina ou da Venezuela no mesmo período, mas a
inflação abaixo dos 5% ao ano foi, também, menor (2).
Desde 2011, com Dilma, o Brasil
entrou em fase de estagnação econômica e reprimarização produtiva. As
concessões à grande burguesia aumentaram, não diminuíram, ao contrário do que
afirmam os defensores das teses desenvolvimentistas. Isenções fiscais, novas e
ambiciosas parcerias público-privadas, favorecimento e garantias redobradas aos
investimentos estrangeiros, além de sinalização de novas reformas trabalhistas
e previdenciárias.
O mais importante, no entanto foi
a manutenção do tripé da política econômica herdada do governo de Fernando
Henrique Cardoso e supervisionada pelo FMI: a garantia do superávit primário
acima de 3% do PIB, o câmbio flutuante em torno dos R$2 por dólar e a meta de
controle da inflação abaixo de 6,5% ao ano. Não deveria surpreender o silêncio
da oposição burguesa, e o apoio público indisfarçável de banqueiros,
industriais, latifundiários e dos investidores estrangeiros.
Eis a chave de explicação do
sucesso popular dos governos do PT: reduziu o desemprego a taxas menores que a
metade daquelas que o país conheceu ao longo dos anos 90; permitiu a
recuperação do salário médio que atingiu em 2011 o valor de 1990; aumentou a
mobilidade social, tanto a distribuição pessoal quanto a distribuição funcional
da renda, ainda que recuperando somente os patamares de 1990, que eram,
escandalosamente, injustos; garantiu uma elevação real do salário mínimo acima
da inflação; e permitiu a ampliação dos benefícios do Bolsa-Família.
Os grandes capitalistas nunca
ganharam tanto dinheiro como nos oito anos de Lula na presidência, uma façanha
que ele próprio, despudoradamente, reivindicou. Basta lembrar que os bancos
bateram todos os recordes de rentabilidade. Ou seja, Lula fez pelo capitalismo
brasileiro aquilo que na Argentina a coligação de radicais e peronistas
dissidentes em torno a De La Rua tentaram fazer e fracassaram, estrondosamente,
ao manter a política econômica de Menem e Caballo, precipitando a insurreição
de dezembro de 2001 que os derrubou. No Brasil, ao contrário, o governo do PT
reforçou a estabilidade institucional do regime político presidencialista.
Desde 2003, Lula fez o ajuste do
superávit primário, levando Meirelles para o Banco Central, fez a reforma da
previdência que Fernando Henrique ambicionava fazer e não conseguiu, e ainda se
reelegeu. Quando da crise mundial de 2008, Lula protegeu o capitalismo dos
capitalistas: o BNDES foi acionado para favorecer a formação de grandes
corporações nacionais, financiando aquisições e fusões.
Foi um governo quase sem reformas
progressivas e muitas reformas reacionárias, porém, com uma governabilidade
maior que seus antecessores. Mas estes dez anos não passaram em vão. Uma
reorganização sindical e política pela esquerda do governo, e das velhas organizações,
como a CUT e o PT, já começou, ainda que o processo de experiência tenha sido e
permaneça, relativamente, lento. A influência do lulismo não irá diminuir,
todavia, sozinha. Será necessária uma luta política corajosa e lúcida para
construir novos instrumentos de representação e organização do proletariado.
Esse foi o sentido da fundação da
CSP/Conlutas e de outras articulações. Será das lutas dos trabalhadores e da
juventude, na resistência inflexível aos governos liderados pelo PT, que surgirá
uma alternativa. Ela é mais necessária do que nunca. A esquerda revolucionária
marxista deve ser um ponto de apoio firme, porque a ela pertence o futuro.
Notas:
1) O censo de 2010 informou que o
Brasil tinha 190 milhões de habitantes, dos quais 30 milhões nas áreas rurais,
portanto, cerca de 85% da população urbanizada. O nível de instrução da
população aumentou: a escolaridade média subiu de três anos de escola em 1980
para 7,3 anos em 2010. Ainda assim, diversas pesquisas sugerem que algo próximo
de 50% da população com 15 anos ou mais não atribui sentido ao texto escrito. O
percentual de pessoas com pelo menos o curso superior completo aumentou somente
de 4,4% para 7,9%. A dinâmica interna da migração do campo para a cidade foi
especialmente intensa entre 1950/80. A população economicamente ativa foi
estimada em 95 milhões e a classe operária representa algo em torno de 15
milhões. A taxa de fecundidade no Brasil caiu, aceleradamente, de 2,38 filhos
por mulher em 2000 para 1,90 em 2010, mas era de mais de 6 filhos por mulher em
1950. Dados disponíveis: http://www.ibge.gov.br/home/ Consulta em novembro de
2012
2) Os dados mais significativos
tanto econômicos como sociais estão disponíveis no site do IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística: http://www.ibge.gov.br/home/ Informações
sobre o censo de 2010 podem ser encontrados no site:
http://www.ibge.gov.br/censo2010/primeiros_dados_divulgados/index.php
Consulta em novembro 2012.
Valerio Arcary é professor do
IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e doutor em
História pela USP.
Fonte: site correiocidadania.com
Um comentário:
Os socialismos e outras utopias humanitárias são uma concessão tática feita pelo "sistema" dentro de sua milenar estratégia escravagista. Eternos Generais Custer...
O sistema renova sua enganadora embalagem. O conteúdo é o mesmo, escravagismo. Não quer que você cresça, quer que você obedeça ou apodreça. E que morra logo, assim que não puder mais "doar" seu sangue e sua democrática, digo, escrava força de trabalho. É preciso repensar, no campo das ideias conscientes, novas táticas em uma nova estratégia de libertação da humanidade.
Sinto muito, sou grato.
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