A partir do momento em que Julian
Assange conseguiu evitar a prisão, buscando refúgio na embaixada do Equador em
Knightsbridge, escapando assim de ser extraditado para a Suécia, e
provavelmente, em seguida, para os EUA, os jornalistas, colunistas e
comentaristas britânicos tornaram-no alvo da mais escandalosa agressão. Parecem
babar de ódio, enquanto repetem os mais mesquinhos ‘exemplos’ de uma pressuposta
grosseria, pressuposto egoísmo e aparência pressuposta ‘péssima’, como se o que
dizem fosse verdade e, por ser escrito pelos que escrevem, como se se tratasse
de crimes imperdoáveis.
O que se lê na imprensa britânica fala, uma
vez mais, muito mais do convencionalismo e do instinto de manada dos formadores
britânicos de opinião, do que de Assange. O que passa sem ser noticiado, em
toda a cobertura, é o quase inacreditável sucesso do fundador de WikiLeaks, que
conseguiu publicar documentos do governo dos EUA, os quais, publicados,
permitiram que muitos, em todo o mundo, começassem a saber como realmente agem
seus governos. Que os eleitores conheçam, precisamente, esse tipo de fato é a
alma da democracia, porque os eleitores têm de ser bem informados, para que
consigam eleger representantes que de dediquem a fazer “governo do povo, pelo
povo e para o povo”.
Graças a WikiLeaks, a opinião pública teve
acesso a mais informação sobre o que fazem pelo mundo os EUA e seus aliados do
que nunca antes, em toda a história da imprensa ocidental. O único momento
semelhante a esse que me vem à mente foi a publicação, pelos bolcheviques
vitoriosos em 1917, de tratados secretos, incluindo planos da Grã-Bretanha e da
França, para ocupar o Oriente Médio[1].
Paralelo mais fácil foi a publicação dos
Papéis do Pentágono, graças a Daniel Ellsberg em 1971, que revelaram as
sistemáticas mentiras do governo Johnson sobre o Vietnã. Como se fez contra
Assange, Ellsberg foi massacrado pela imprensa e pelo governo dos EUA, que o
ameaçou com as mais severas penas.
Aspecto extraordinário da campanha contra
Assange é que jornalistas, colunistas e ‘especialistas’ sentem-se perfeitamente
livres para publicar milhares de palavras sobre alegadas faltas de Assange, sem
que se leia qualquer indignação contra os crimes de Estado, infinitamente mais
graves, que WikiLeaks revelou ao mundo. Os críticos e os leitores que concordam
com eles deveriam, antes de falar, assistir a 17 minutos de um filme divulgado
por WikiLeaks, filmado pela tripulação de um helicóptero Apache, sobre um
bairro na parte leste de Bagdá, dia 12/7/2007. Mostra a tripulação do
helicóptero matando, a rajadas de metralhadora, pessoas que se veem no solo, e
que os soldados norte-americanos dizem supor que fossem guerrilheiros armados.
Examinando o filme, não consigo ver arma alguma. O que teria sido tomado por
arma, em mãos de um dos mortos, foi depois identificado como câmera de filmagem
que estava sendo usada por Namir Noor-Eldeen, jovem fotógrafo da agência
Reuters, morto, com o motorista também a serviço da Reuters, Saeed Chmagh. O
vídeo mostra o helicóptero voltando para um segundo ataque, dessa vez contra
uma caminhonete que parou para recolher os cadáveres e os feridos. O motorista
dessa caminhonete também foi morto, e duas crianças foram feridas.
"Há-há-há! Acertei eles!” – grita, em triunfo, um dos soldados
norte-americanos. “Olhem só os filhos da puta mortos!”
Eu estava em Bagdá quando a matança aconteceu
e lembro que, no momento, nem eu nem outros jornalistas que lá estavam
acreditamos no que o Pentágono informou, que todos eram guerrilheiros armados.
Mas não havia como provar que o Pentágono mentira. Rebeldes armados não
estariam conversando na esquina, com helicópteros dos EUA à vista. Logo se
soube que havia um vídeo da matança, mas o Departamento de Defesa recusou-se
terminantemente a divulgá-lo, nem quando se invocou a Lei da Liberdade de
Informar [orig. Freedom of Information Act]. A versão oficial nunca pôde ser
desmentida, até que o vídeo chegasse a WikiLeaks, enviado, parece, por um
soldado dos EUA, Bradley Manning. WikiLeaks publicou o vídeo em 2010.[2]
Os telegramas diplomáticos que chegaram a WikiLeaks
foram publicados adiante, no mesmo ano, em cinco jornais – The New York Times,
The Guardian, Le Monde, Der Spiegel e El País – mas a resposta ao trabalho de
Assange foi surpreendentemente mesquinha. Os jornalistas pareceram ter ficado
furiosos por seu campo de caça privativo ter sido invadido por um nerd
australiano, que fizera o trabalho que os jornalistas não haviam feito. Na
Grã-Bretanha, o colunariato das empresas jornalísticas é clube notoriamente
fechado, conservador e hostil a quem chegue de outros contextos culturais, com
diferentes normas políticas.
Mas nem isso bastaria para explicar que toda a
mídia planetária declarasse aberta a temporada de caça a Assange. Para que isso
acontecesse, foi preciso que aparecessem acusações de que Assange seria autor
de estupro na Suécia. Acusações de estupro destroem qualquer reputação, por
mais frágeis que sejam as provas e mesmo que não haja prova alguma. Assange
nunca conseguiu recuperar-se completamente daquelas acusações. Quanto à
sugestão de que ele estaria exagerando o risco de ser extraditado da Suécia
para os EUA, é parte da caçada: quem, em sã consciência se exporia a algum
acaso, mesmo que com 5% de probabilidades de deixar-se meter-se num voo para a
Suécia que poderia levá-lo a sentença de 40 anos de cadeia nos EUA?
Muitos jornalistas e comentarista agarraram-se
ao argumento oficial de que os vazamentos teriam “posto vidas em risco”. Esse
lobby começou a fracassar e a calar em 2011, quando funcionários do Pentágono
tiveram de reconhecer, extraoficialmente, que não havia qualquer prova de que
alguém tivesse sido ferido ou morto por causa dos vazamentos.
Resposta melhor seria que WikiLeaks nada
revelou de realmente secreto; e que os documentos aos quais o cabo Manning teve
acesso não eram classificados como secretos. Outro bom argumento de defesa ouvi
de um diplomata dos EUA em Cabul, onde eu estava na época da publicação. Disse
ele: “Não há segredo algum a ser divulgado por WikiLeaks, porque os ‘segredos’
já foram vazados pela Casa Branca, Pentágono ou Departamento de Estado, que não
souberam proteger os próprios documentos sigilosos, se fossem sigilosos”.
Na prática, os documentos publicados por
WikiLeaks são exclusivamente e vastamente informativos sobre o que os EUA fazem
e sobre o que os EUA pensam sobre o mundo no qual vivemos. Por exemplo, há um
telegrama enviado da embaixada dos EUA em Cabul, em 2009, no qual o
primeiro-ministro é descrito como “indivíduo paranoico e fraco, sem qualquer
familiaridade com o básico da construção nacional”.
[3]
Especialistas em Afeganistão comentaram que os
defeitos de Karzai absolutamente não eram segredo ou novidade para ninguém.
Deixaram de comentar que ali se ouvia a opinião de diplomatas norte-americanos
experientes, falando sobre um homem que os norte-americanos e os britânicos
estavam matando e morrendo, não para tirar do poder, mas para manter no poder.
Todos os governos são hipócritas, em maior ou
menor medida, e há grande distância entre o que dizem em público e no privado.
Quando o povo exige transparência democrática em ações ou políticas gerais, o
Estado e os governos fingem que enfrentam demandas por total transparência, que
tornaria inviável qualquer governança efetiva. A rapidez com que convertem
demandas razoáveis em demandas alucinadas visa, quase sempre, a ocultar algum
fracasso ou a defender o monopólio do poder.
Naquele caso, os EUA desejavam manter secreta
bem mais que uma opinião negativa sobre Karzai, principal aliado local dos EUA.
O real segredo que os EUA desejavam manter secreto é que não tinham qualquer
parceiro confiável no Afeganistão e que, portanto, a guerra contra os Talibã
tinha de ser dada por antecipadamente perdida.
Assange e WikeLeaks não desmascararam alguma
incoerência, na opinião de um ou outro embaixador. Desmascararam a duplicidade
de julgamentos para justificar a insistência dos EUA em prosseguir guerras
fracassadas, nas quais morrem dezenas de milhares. Informações recentes mostram
que esse tipo de segredo e o sigilo oficiais, com a ajuda empenhada de
jornalistas “incorporados” às tropas, muitas vezes geram exatamente os
resultados que se esperam deles.
No Iraque, nos meses anteriores à eleição
presidencial de 2004 nos EUA, muitas embaixadas estrangeiras em Bagdá sabiam e
informavam que os EUA só controlavam porções ínfimas de território, em país
hostil. Mas o governo Bush conseguiu persuadir do contrário os eleitores
norte-americanos: que estaria combatendo e vencendo uma batalha para instalar a
democracia, contra os restos do regime de Saddam Hussein e seguidores de Osama
bin Laden.
O controle da informação pelo Estado e a
capacidade de manipular a informação, servindo-se para isso da
imprensa-empresa, tornam sem sentido, na prática, o direito democrático de
votar. Por isso os povos precisam muito de gente como Assange: para dar
sentido, novamente, ao voto democrático.
[1] A publicação desses tratados
secretos foi dos primeiros atos do governo revolucionário bolchevique. Foram
publicados dia 17/11/1917, por ordem de Trotsky, então Comissário do Povo para
Assuntos Internacionais. Em 26/2/1922, o New York Times publicou matéria sobre
eles (em http://query.nytimes.com/gst/abstract.html?res=F40717FC355810738DDDAF0A94DA405B828EF1
). Em resumo acessível hoje
dessas notícias, lê-se: “Desconfiança reina na Europa. Rússia revela os
Tratados Secretos. Confiança nos EUA segue inabalável” [NTs].
[2] Os que não conheçam podem
comprovar, em http://www.youtube.com/watch?v=2Lt_DfYKH0Q
. Cenas terríveis [NTs].
[3] WikiLeaks “Diplomatic Cables”, Tuesday, 07
July 2009, 13:29
S E C R
E T SECTION 01 OF 03 KABUL 001767 / SIPDIS
EO 12958 DECL: 07/03/2019 / TAGS PGOV, PREL, AF
SUBJECT: KARZAI ON THE STATE OF US-AFGHAN
RELATIONS (Guardian, UK,
http://www.guardian.co.uk/world/us-embassy-cables-documents/215470) [NTs].
Patrick Cockburn, The Independent
http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/patrick-cockburn-how-julian-assanges-private-life-helped-conceal-the-real-triumph-of-wikileaks-7901737.html
Tradução: Vila Vudu
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