Quando uma “democracia burguesa” é derrotada por exército fascista, o
resultado chama-se tecnicamente e
politicamente – “golpe de Estado”. Se milhões de pessoas, inclusive muitas das
quais revolucionárias no primeiro sentido acima, pedem golpe de Estado, nem por
isso o golpe deixa de ser golpe
por Santiago Alba Rico
Podemos falar de “revolução” nos
seguintes casos
Quando uma maioria social, com
interesses diversos ou não, e mesmo que não tenha programa político, derruba
uma ditadura.
Quando um programa político de
transformações radicais, pelas armas ou não, e com o apoio de uma maioria
social, impõe-se sobre uma “democracia burguesa”.
No Egito, houve revolução, no
primeiro desses sentidos, em 2011. E até agora não houve revolução alguma, no
segundo desses sentidos. E a derrubada, agora, de Morsi, não se encaixa – é
evidente – em nenhuma das duas definições acima.
Não havia ditadura a derrubar no Egito (só uma
limitada “democracia burguesa”), e não há qualquer programa político de
transformações radicais em jogo, pelo menos que a maioria da praça aprove.
Quando uma “democracia burguesa” é derrotada
por exército fascista, o resultado chama-se – tecnicamente e politicamente –
“golpe de Estado”. Se milhões de pessoas, inclusive muitas das quais
revolucionárias no primeiro sentido acima, pedem golpe de Estado, nem por isso
o golpe deixa de ser golpe.
Se milhares de pessoas na praça não querem a
intervenção do Exército – porque são revolucionárias também no segundo sentido
do termo “revolução”, acima –, o golpe de Estado anula completamente a vontade
delas.
Exército fascista que destitui e sequestra
presidente eleito; que suspende a Constituição; que dissolve o Parlamento; que
mete na prisão os dirigentes do partido majoritário; que fecha suas televisões
e seus jornais; que atira contra membros e militantes do partido majoritário
está dando um golpe de Estado. Se é apoiado por muita gente, o golpe é mais
fácil. Se, além do mais, a esquerda também apóia o golpe e põe-se a chamá-lo de
“revolução”, então, o golpe é facílimo.
No mundo árabe não havia nem há
condições para que se produza revolução no segundo sentido aqui comentado. Por
que era importante – crucialmente importante – que se produzissem revoluções no
primeiro dos dois sentidos? Por dois motivos.
Primeiro, porque o estabelecimento de uma
“democracia burguesa” sob impulso dos povos permitia a formação de um novo
sujeito político e a construção, nas novas condições democráticas, de
alternativas coletivas até agora inexistentes e inimagináveis.
Segundo, porque uma “democracia burguesa”
traria à luz a verdadeira relação de forças na região, favoráveis aos
islamistas. Era um perigo, sim, mas também uma necessidade inescapável, por
todas essas ditaduras haviam justificado seu poder – e a repressão de todas as
expressões políticas, incluída a esquerda – contra o “terrorismo islâmico”, que
elas mesmas alimentavam, num enlace felizmente eterno para os caudilhos,
mediante a repressão e a tirania.
A normalização política abria a esperança de
uma “democratização do islamismo” através do exercício do governo, como
aconteceu em parte em Túnis e também no Egito antes da derrubada de Morsi. A
busca do confronto a qualquer preço, e a estratégia de perseguição e derrubada
por qualquer meio, só pode abortar, por assim dizer, “o amadurecimento do
fracasso” do projeto islamista, que é inevitável, mas que se deve produzir num
marco democrático, se não quisermos voltar ao trágico “dia da marmota” que há
décadas cobre a região de sangue e subjuga seus povos.
A esquerda, desgraçadamente, se prestou a esse
jogo no qual só o “ancien regime” pode vencer.