Mário Magalhães
(De bigode, na primeira fila, o ditador Videla; ao seu lado,
João Havelange)
Morreu o ex-ditador argentino
Jorge Rafael Videla. Tirano com viés nazistoide, o general acumulou
perversidades em seus tempos de poder, quando, só para lembrar, trocava
salamaleques com o presidente da Fifa, João Havelange.
Ao contrário do que muita gente
pensa, não foram abertos os arquivos da repressão argentina. Os acervos de 1976
a 83 foram destruídos ou escondidos. Sumiram. Restaram muito poucos documentos
do horror.
Acabei por descobrir no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro uma preciosidade histórica: um relatório da
Força Aérea Brasileira, da época da “nossa” ditadura, nítida tradução de
original argentino, dando conta de um “problema” em 1977. A ditadura vizinha
atirava corpos mutilados de oposicionistas no rio da Prata, mas os cadáveres
desaguavam no Uruguai, causando constrangimentos. A “solução”: passaram a
cremá-los em fornos de hospitais.
O documento foi revelado na
“Folha de S. Paulo” em maio de 2000. No dia seguinte, o jornal “Página 12”, de
Buenos Aires, noticiou a matéria e tascou o título na capa: “Auschwitz
argentino”. Eis a íntegra da reportagem que escrevi:
*
O regime militar da Argentina
(1976-83) sumia com os corpos de opositores de esquerda assassinados pelas
forças de repressão jogando-os no rio da Prata ou cremando-os em fornos de
hospitais públicos.
Essa afirmação consta do informe
confidencial nº 013/A-2 do 3º Comar (Comando Aéreo Regional), da Aeronáutica.
O relatório foi escrito num formulário
do Cisa (Centro de Informações da Aeronáutica) no dia 11 de agosto de 1977, com
o título “Evolução da Luta Anti-subversiva na Argentina – Período de Janeiro a
Maio de 1977″.
A Folha encontrou uma cópia
guardada no Arquivo Público do Estado do Rio. Sobre o papel, foi impresso o
carimbo “Ministério da Aeronáutica, 2ª Seção do Estado-Maior, 3º Comando Aéreo
Regional”.
O último parágrafo do texto de
duas páginas diz: “Dado que o lançamento de cadáveres no estuário do rio da
“Plata” causa, vez por outra, problemas no Uruguai, com o aparecimento de
corpos mutilados nas praias, estão sendo empregados fornos crematórios de
hospitais estatais para cremação de subversivos abatidos”.
Informado ontem pela Folha sobre
a existência do relatório da Aeronáutica, o presidente do Movimento de Justiça
e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krischke, disse que essa é a
primeira vez que aparece, no Brasil ou na Argentina, um documento relatando os
métodos de desaparecimento de militantes argentinos.
“No Brasil, nunca se conheceu um
documento sobre isso”, disse Krischke. “Na Argentina, o que existiram foram
depoimentos de pessoas que participaram da repressão. Não vieram a público
documentos dos órgãos de informação falando a respeito dos desaparecimentos.”
Krischke lembrou um livro de um
ex-integrante do aparato repressivo argentino contando que corpos de
oposicionistas eram jogados no mar. “Mas não havia documentos.”
O informe da Aeronáutica dá mais
pistas sobre o fenômeno do sumiço de corpos na Argentina: “A imprensa noticia
que, entre 1º de janeiro e 31 de maio (de 1977), foram abatidos 325
subversivos, número este que está muito aquém da realidade, pois, somente em
confrontos, entre 24 e 29 de maio, mais de cem subversivos foram mortos, tendo
sido noticiados apenas 32″.
O que o relatório indica é o
seguinte: em cinco dias, no máximo uma em cada três mortes se tornou pública.
Os outros dois terços podem não
ter tido as mortes registradas, com o consequente desvio dos corpos.
Há vários indícios de que a fonte
dos detalhes apresentados pelo 3º Comar foram órgãos repressivos argentinos. No
começo, o texto registra que “esta agência tomou conhecimento e difunde o
seguinte informe”.
Portunhol
O rio da Prata é chamado de
“Plata”, em espanhol. O líder da Juventude Universitária Peronista José Pablo
Ventura, “abatido”, não é descrito como líder ou cabeça da organização, mas
como “cabecilha”, do castelhano “cabecilla”.
Outra militante assassinada (“abatida”,
para os militares brasileiros) foi Norma Inês Cerrota, “responsável sindical”
da Coluna Sul do maior grupo de guerrilha argentino, os Montoneros.
“Responsável sindical”, tradução
literal de nomenclatura empregada pela esquerda em francês e espanhol,
significa “líder sindical” no Brasil.
Com entusiasmo, a Aeronáutica
afirma que “os grandes êxitos que vêm alcançando as Forças Armadas e de
segurança são derivados, em parte, do grande número de subversivos (cerca de
200 no último mês) que desertaram e se apresentaram àquelas forças, que deles
obtêm informações sobre os movimentos dos subversivos, em troca de garantia de
suas vidas”, conforme o documento.
A Argentina foi o país do Cone
Sul com maior número de desaparecimentos políticos nas ditaduras militares.
A Comissão Nacional de
Desaparecidos comprovou 8.961 casos, de acordo com Jair Krischke.
A organização Mães da Praça de
Maio e outras entidades de defesa dos direitos humanos estimam o número em 30
mil.
A colaboração entre o regime
militar do Brasil (1964-85) e o da Argentina foi intensa.
No sábado, a Folha publicou uma
lista de 149 argentinos procurados em território brasileiro, em 1976, a pedido
do governo daquele país.
Em 1975, foi criada a Operação
Condor, uma ação conjunta de combate a militantes de esquerda que reuniu os
governos militares de Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia.
Antes da Condor já havia
colaboração intensa entre as Forças Armadas da América do Sul.
fonte: site PCB
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