Há uma antiga
e insistente determinante que alude as
questões do Direito Humanitário que,
quando mencionada, hesita em avançar ficando uma lacuna entre a questão teórica
e a praticidade do fenômeno.
A
entrevista que segue nos envolve, mais
uma vez, nesse tema que tem muito ainda antes de uma solução derradeira.
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Juiz da Vara de Execuções Penais no Amazonas e doutorando em Criminologia pela USP, membro da Associação de Juízes para a Democracia e da LEAP-Low Enforcement against Proibition (Agentes da Lei contra a proibição das drogas) fala do sistema carcerário brasileiro, do novo código penal
Causa Operária: Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o
sistema carcerário no Brasil é um dos mais brutais no mundo e o que mais
cresce. Como você vê a situação dos presos hoje no Brasil?
Luís Carlos Valois: É engraçado que cada instituição coloca a culpa
na outra, o poder judiciário coloca a culpa no poder executivo, que coloca a
culpa no legislativo e cada um fica empurrando o problema para o outro. O
executivo achando que o problema é do legislativo que cria leis cada vez mais
punitivas e ações cada vez mais severas. O judiciário prende cada vez mais e
não olha a situação específica de cada cidadão que está sendo preso. A
tendência é cada vez dar penas maiores e prender cada vez mais. O executivo
constrói penitenciárias muito ruins, mas constrói. Não em número suficiente,
mas constrói. E acha que o papel dele é apenas esse. Então, essa cultura
punitivista na nossa sociedade é enraizada tanto no executivo como no
legislativo e judiciário. Essa é a primeira causa de termos um sistema
penitenciário superlotado e desumano. A segunda causa mais emergente atualmente
é a questão da proibição do entorpecente. Existem estados brasileiros onde mais
de 50% dos presos são envolvidos com drogas. Ou seja, você pune uma pessoa
envolvida com entorpecente que é um ato praticado consensualmente, isto é, uma
pessoa comprou e outra vendeu, prática inclusive estimulada por uma sociedade
capitalista, quer dizer, consumir, comprar e vender é algo estimulado pela
sociedade. Mas você pune exclusivamente os pobres, que encontram um caminho de
sobrevivência nesse tipo de comércio, uma sobrevivência com condições mais
dignas. E prende também os pobres que consomem, porque os ricos que consomem
não são presos. Os ricos que têm grande quantidade sempre são usuários e os
pobres são sempre traficantes. Quer dizer, já começa daí uma justiça elitista
que está prendendo os pobres em razão de uma atividade estimulada pelo próprio
sistema capitalista.
Causa Operária: A superlotação dos presídios chegou a um ponto que, no
estado do Espírito Santo, foram utilizados contêineres como celas. Como você
avalia a questão dos direitos humanos dentro dos presídios?
Luís Carlos Valois: Inclusive essa denúncia do estado do Espirito
Santo foi feita pelo professor Sérgio Salomão Shecaira, professor da USP,
quando presidente do Conselho Nacional de Política Penitenciária. É verdade,
cada vez mais não existe local para prender. Temos um déficit de vagas, além de
termos centenas e centenas de mandatos de prisão na rua para serem cumpridos.
Hoje em dia há falta de interesse em investir no sistema; qual é o investimento
que há nesse sistema a não ser o de criar vaga? E o que a gente quer? Um
depósito de pessoas? Se o sistema penitenciário for apenas isso, vamos
continuar criando vagas em um depósito sujo e imundo, como temos feito durante
toda a história. Não temos investimento de pessoal, de melhoria de salário dos
técnicos e dos agentes penitenciários, de condições de trabalho, de humanização
do sistema. E esse investimento de criar vaga vem da cultura do “prender”.
Note-se que não basta culpar apenas o sistema, porque a própria sociedade
aceita esse discurso punitivista.
Causa Operária: Segundo as estatísticas, mais de 1/3 da população
carcerária tem HIV. Porque o índice é tão alto entre essa população?
Luís Carlos Valois: Tenho 20 anos de trabalho com presídios e posso
afirmar que todas as medidas tomadas em favor da prisão são paliativas. Às
vezes um governo de um estado constrói um “hopistalzinho” melhor, mas não passa
disso. A instituição prisional em si está falida, prisão não é solução pra
nada. Preso perigoso é 5% dos que estão no sistema penitenciário. Na minha
opinião, ao restante poderia se pensar numa outra solução não encarceradora.
Porque a maioria dos crimes são pequenos furtos e entorpecentes. Tem estado
brasileiro que chega a ser 70% de presos por entorpecentes. Além disso, há a
cifra negra, ou seja, a quantidade de crimes que acontecem e não são sequer
denunciados ou investigados. Apenas 1% do total de crimes chega a ser punido,
ou seja, vivemos em um “faz de conta” para satisfazer uma parcela da população,
para parecer que o Estado está fazendo alguma coisa pela segurança pública. Com
relação aos doentes e às drogas há uma incoerência ainda maior, porque você
prende o cidadão na penitenciária por vender droga, por exemplo, e lá ele
encontra à venda cocaína, maconha etc. O sistema de saúde penitenciário sempre
foi um remendo. Quando há um sistema de saúde em algum estado que atua de forma
melhor é em uma ou outra penitenciária, e isso acontece só por seis meses.
Depois tudo é abandonado. A prisão é algo tão incoerente que seus
administradores se perdem nessa irracionalidade. É sem sentindo você prender
uma pessoa para depois querer que ela viva melhor em sociedade. A prisão em si
é paradoxal, é uma estrutura corroída. Todo o sistema prisional, de saúde, o de
infraestrutura vai ser sempre uma medida paliativa. Nem nos EUA, nem na
Inglaterra, nem na Holanda, em nenhum lugar prisão funciona como se idealiza.
Causa Operária: Então a maioria da população carcerária é de pobres e
negros?
Luís Carlos Valois: A maioria dos presos são pobres e negros. E com
relação às mulheres, se no caso dos homens até 70% dos presos são
entorpecentes, no caso das mulheres esse número pode chegar a 90%. Se
pudéssemos iniciar uma política contra a criminalização de entorpecente, como
eu penso que deveríamos fazer, nós teríamos menos de 50% da população
carcerária masculina e menos de 90% da feminina. A população carcerária
feminina é feita basicamente dessa injustiça social de prender a mãe, a esposa
que fica em casa. Quando a polícia invade uma casa ela não quer saber de quem é
a droga, ela prende quem está dentro da casa. E a polícia tende a achar droga
mesmo se não tiver, pois se não achar droga depois de uma invasão de domicílio,
o próprio policial pode ser punido por abuso de autoridade. Então, a tendência
de achar a droga no barraco e na periferia é muito grande depois de uma
invasão. Nesse caso a pessoa que fica em casa, que é a mulher, vai ser presa.
Se os policiais invadem uma casa às duas horas da tarde e o dono da droga não
estiver lá, é a mãe dele quem vai ser presa. Ha vários casos de mãe e esposa
presas porque estavam numa casa onde existiam drogas. Essa mulher vai ser presa
em flagrante e como traficante. Depois, quando é relaxado um flagrante desses,
se for, ela já ficou presa meses ou anos. Todas são pobres. E a maioria negra.
Antigamente todo mundo dizia que para ser preso tinha que ter os 3 Ps: “pobre,
preto e puta”. Hoje em dia tem que ser MA: “miserável e azarado”. É um sorteio.
A polícia seleciona o traficante na rua e essa seleção recai sobre o pobre.
Isso sem contar a questão do abandono, porque a mulher normalmente é abandonada
quando está presa. O homem quando está preso tem a visita da mãe, da namorada,
da esposa. Já na penitenciária feminina é muito difícil ver um homem indo
visitar sua ex-companheira. Ela normalmente é abandonada. E a penitenciária
feminina tem mais um agravante: foi feita para homens. Ela masculiniza. A
prisão é uma agressão três vezes maior para a mulher. Faz a mulher se vestir
como um homem, entrar numa cela de homem e sofrer a tortura do encarceramento
como homem. A mulher não foi feita pra ser tratada como homem, numa
penitenciária feita para homens. Tem necessidades específicas.
Causa Operária: O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, declarou
que “preferiria morrer a ser preso em uma penitenciária brasileira”. Qual a
probabilidade de reintegração na sociedade?
Luís Carlos Valois: Meu trabalho de mestrado na Universidade de São
Paulo, orientado pelo Prof. Alvino Augusto de Sá, foi sobre essa questão da
ressocialização. Muitos tribunais usam o termo “ressocializar” como termo
encarcerador. O tema ressocialização é muito perigoso porque é legitimador da
prisão. Quando eu digo que a prisão vai servir para alguma coisa eu estou
legitimando essa atividade punitiva. Nenhuma prisão no mundo ressocializa
ninguém. A pessoa pode se ressocializar sem prisão, com prisão e apesar da
prisão. O discurso ressocializador está sendo usado para encarcerar. Na minha
pesquisa, em cada 100 acórdãos que usavam o termo ressocialização, 60 usavam
para encarcerar, aumentar ou agravar pena, mesmo todos sabendo que a prisão não
ressocializa. Como eu posso dizer para um cidadão que eu vou colocá-lo na
prisão para ressocializá-lo? Soa até ridículo. Não podemos punir dessa forma,
com um argumento desfeito pela realidade. Se chegássemos ao ponto de dizer:
“olha, a prisão não é para ressocializar, é para te prender pelo que você fez,
para te punir”, seria um grande avanço; contanto que levássemos em consideração
o princípio constitucional, fundamento do Estado Democrático de Direito, a
dignidade humana. O mínimo que se deveria fazer era respeitar a dignidade da
pessoa humana. Isso já estaria ótimo. A gente não respeita nem a dignidade,
quanto mais possibilitar a ressocialização de alguém. O que o ministro fez foi
ótimo, reconhecer que a prisão brasileira não serve para nada de útil. Se ele
conhecesse as outras iria ver que nenhuma serve. Mas o que ele vai fazer agora?
Ele é o ministro da justiça, depois dessa declaração ele tem o compromisso
moral de deixar o cargo dele ou fazer alguma coisa.
Causa Operária: Temos assistido em São Paulo a um verdadeiro massacre
da população mais pobre. Policias chegaram a atear fogo em um garoto após ver
que ele já tinha passagem pela policia. Como você vê essa punição, a execução
por policias?
Luís Carlos Valois: A pessoa que já foi presa sempre vai estar
estigmatizada. Nunca mais vai poder ser ela mesma, nunca mais vai ser livre.
Com muita dificuldade ela pode conseguir trabalho, ruim e ganhando pouquíssimo,
mas vai estar estigmatizada para sempre. A prisão além de não ressocializar ela
estigmatiza. A prisão deixa uma marca para sempre. O que está acontecendo em
São Paulo ultimamente é somente a visibilidade maior do que já estava
acontecendo há muito tempo. A polícia sempre matou, se a policia está matando
de forma mais cruel é porque a violência também está mais cruel. Isso é só uma
evolução de muitos anos. O PCC e essas outras organizações de presos nasceram
por pura e simples inoperância do Estado. Pense numa escola, numa sala de
adolescentes, diga para eles que não vão mais ter recreio, que vão ter que
ficar presos em sala de aula por mais tempo além do horário normal, eles vão se
rebelar, vão se reunir, faz parte da natureza humana. Essas comunidades
carcerárias abandonadas há anos nada mais fizeram do que se organizarem. A
gente imagina o crime organizado formado de ricos, no estilo mafioso. Mas o
crime organizado é miserável, porque a penitenciária só tem pobres. A polícia
não invade um apartamento nos Jardins, mas sim a favela, e tem drogas nos
Jardins. O crime organizado só tem esse nome porque o Estado mesmo é cada vez
mais desorganizado, incapaz de funcionar como ente que deve promover justiça.
Causa Operária: Como vê a atuação do PCC dentro das penitenciárias
brasileiras?
Luís Carlos Valois: Para um juiz eles nunca vão me dizer a forma
exata como atuam. Apesar de frequentar o sistema penitenciário, tudo é mais
difícil para um juiz perceber. Procuro ser o mais justo possível e tento fazer
uma reflexão sobre a violência e ilegalidade do cárcere. Obviamente que eles
estão se organizando. Claro que na penitenciária tem celular e drogas. A
penitenciária só é regime fechado para a sociedade que quer imaginar estar
livre. Eu já tive com presos sob minha jurisdição que foram mandados para
penitenciárias federais e quando voltaram me disseram: “Doutor, os presos
pobres que vão para essas penitenciárias acabam sendo cooptados pelo PCC.
Porque o PCC paga passagem dos familiares para irem visitá-los e paga a
manutenção desses familiares.” Então, nem nas penitenciárias federais ditas
como de alta segurança é evitado contato, mas sim está fomentando o crescimento
dessas organizações de presos. Não é muito o que posso dizer da atuação deles,
só o que parece evidente.
Causa Operária: O projeto de reforma do Código Penal prevê a “criação”
de cerca de 200 novos crimes, ou seja, qualquer cidadão poderá ir para a
prisão. Como você avalia e o que está por trás dessa nova reformulação do
Código Penal?
Luís Carlos Valois: Obviamente que o novo código penal está sendo
organizado e escrito no embalo da mídia e da cultura punitiva que a gente vive.
Não só cria mais crimes como torna muito mais rigorosas as penas da maioria dos
crimes. Com esse código penal com certeza vamos ter o dobro da população
carcerária nos próximos dez anos. Se hoje é possível colocar 40 pessoas numa
cela em que caberiam no máximo dez, e temos mais de meio milhão de presos,
imagina depois dessa reformulação. No Amazonas há uma cela assim, feita para
dez que possui 40; um dorme em cima do outro, tem rato, barata, é imunda, e
toda vez que falo de prisão vou repetir a imundície que é. Esse código penal,
parece claro, é para inglês ver, é inaplicável se você olhar para a realidade.
Infelizmente o direito não lida muito bem com a realidade. Os juristas escrevem
livros de direito achando que o direito é uma ciência independente da
realidade, tipo, o cara vendeu entorpecente tem que ser preso; furtou um celular
tem que ser preso. Tudo é prisão. Como se a prisão que está na lei de execução
penal existisse de fato. Só que aquela prisão que está na lei não existe e o
profissional do direito não percebe isso. Ele trabalha com papel; crime tal tem
pena tal, e esta primordialmente é a prisão. Ele não percebe que essa prisão do
papel não existe. Toda prisão no Brasil é ilegal. Porque se a prisão que está
na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal.
Causa Operária: Qual a solução que o senhor enxerga para o sistema
carcerário brasileiro?
Luís Carlos Valois: Eu antecipei um pouco essa resposta. Como deu
para perceber eu não acredito na prisão. Mesmo que você tenha um psicopata, na
prisão ele vai ficar pior e sair pior de lá. A prisão não é solução para nada.
Não é resposta nem para os piores dos criminosos. Mas é utópico pensar no fim
da prisão. Ninguém iria aceitar. Eu sou o juiz da vara de execução e acho que
toda prisão é ilegal. Mas se eu chego em minha comarca e solto todos os presos
quem vai ser preso sou eu. Teve um juiz em Minas Gerais que soltou todos os
presos, porque a prisão estava lotada e era inviável, isso tudo comprovado por
perícia; ele foi afastado do cargo. Eu sou juiz, mas tenho filho para criar,
não posso perder meu emprego. Sei que a prisão onde mantenho os condenados é
ilegal, mas o sistema não aceita que eu diga ou aja de acordo com o meu
pensamento. Uma maneira de lidar com esse encarceramento em massa é adotar a
política contra a criminalização da droga, defendê-la, como tenho feito. Nem
falo em descriminalização, porque quando você fala em descriminalização você
está dando como certa a criminalização, e quem foi que disse que criminalizar
entorpecentes é certo? Por isso falo em ser contra a criminalização. Ninguém
nunca discutiu a razão pela qual foram criminalizados os entorpecentes, aliás,
só alguns deles. Discutir descriminalização não é correto, tem que se discutir
por que se criminalizou. Eu sou contra a criminalização porque acho a
criminalização prejudicial para a sociedade e irracional. Você colocar uma
pessoa que vende entorpecentes num local onde se vende entorpecentes é
incoerente. Tornar a justiça incoerente e sem capacidade de diálogo é tornar a
própria justiça, mais do que injusta, incapaz de realizar justiça.
Fonte: site PCO
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