
Oswaldo Sevá Filho - Os homens levantam muito cedo, em cidades tão distantes quanto Londrina (PR), Salvador (BA), Lajes (SC), Juiz de Fora e Uberlândia (MG), Campinas e Sorocaba (SP), e várias outras nos estados do Rio de Janeiro, da Bahia, do Espírito Santo. Vão quase todos para a cidade do Rio de Janeiro, alguns por via aérea, muitos em ônibus de linha. Têm que passar pela rodoviária Novo Rio, onde fazem a baldeação para o norte fluminense; ainda viajam mais três horas e tanto pela BR 101, num dos trechos mais mortíferos do país, após o término da pista dupla em Rio Bonito.
Na estação rodoviária de destino,
Macaé ou Campos, pegam mais ônibus e vans até os heliportos mais movimentados
do país, no litoral de Macaé e de Atafona – de onde vão finalmente “subir”. Ou
seja: embarcar em helicópteros e voar ainda por meia hora, uma hora ou mais,
até pousar em cada uma das dezenas de plataformas petrolíferas cravadas ou
ancoradas no meio do alto-mar, de oitenta a quase duzentos quilômetros da
costa. O quase desconhecido, e muito propagandeado, mundo do “off-shore”.
Ali passam duas ou três semanas
embarcados. Cada vez mais os estrangeiros também embarcam nas plataformas e
tripulam os navios de apoio, lançadores de tubos, de mergulho, rebocadores. São
brigadas de noruegueses, alemães, italianos e outros europeus, de
norte-americanos, árabes, orientais, que ficam no mar por mais tempo que os
nacionais.
O tipo da alternância
embarque/desembarque depende de quem os contratou, e do quanto topam ganhar em
troca do trabalho e dessa aventura. Os regimes são de 14 dias no mar por 21 em
terra para a maioria do pessoal mais estável, da própria Petrobrás. Para os
outros, 14 por 14 dias; também depende de como fazem com o direito às férias,
se “vendem” ou não. Os tempos de percurso de casa até o alto-mar e de volta pra
casa, de muitas horas, dias, são descontados, naturalmente, do período “em
terra”. No mar, trabalham todos feito doidos em grandes e apertadas fábricas
químicas flutuantes; quando não fazem plantão, nos turnos de revezamento, ficam
de vigília, em “stand by”, de sobreaviso a qualquer hora do seu sono ou do seu
banho.
Sono? Dormem dentro das fábricas
e navios, nas cabines, celas melhoradas; se forem subcontratados, das
“empreiteiras”, pode ser que durmam em containeres no convés, celas pioradas. O
dormir e o estar desperto são para eles noções totalmente distintas do que são
para muitos de nós; viram noites seguidas, conforme as escalas de turnos, e às
vezes emendam as noites com os dias, as tais “dobras” de turno, porque faltou
gente ou sobrou muito serviço. Repouso verdadeiro, algo raríssimo.
As refeições são fartas e
variadas, mas uma boa sesta é quase sempre um sonho distante. Tudo, inclusive o
lazer, é feito ali dentro mesmo: caminhadas por entre tanques e guindastes, algum
esporte de salão numa quadra fechada, que pode estar balançando ao sabor das
ondas e ventos, salas de vídeos onde projetam “blockbusters” e pornôs. Todos
pensando na vida lá fora, em terra, os telefonemas repetidos e ansiosos,
muitos, para os familiares e amigos que ficaram em terra, naquelas cidades
distantes.
Suas companhias no mar, com
certeza, além da maresia e do balanço, são a pressão das chefias e das metas e
os vários medos: o de errar, de provocar prejuízo, de ser punido; o medo de
machucar a si próprio ou aos outros, sem ter ao menos garantido o registro
formal do acidente ou da doença. O medo de não poder mais trabalhar e o de
morrer queimado, esmagado, afogado.
O perigo começa na estrada, as
longas idas e voltas, aumenta no vôo de helicóptero, tantos já caíram. Está em
todo canto, nas passarelas e escadas oleosas e apertadas, nos corredores
quentes e barulhentos, nos movimentos dos guindastes e gruas, nas vibrações e
faíscas dos grandes motores elétricos e das turbinas, nas onipresentes
emanações de hidrocarbonetos, de gases às vezes letais como o sulfídrico. Mais
o risco de incêndio e de explosão, os “kicks” e “blow-outs”, trancos ou
verdadeiros coices que a tubulação e a plataforma levam quando bolhas de gás
pressurizado sobem das profundezas das rochas sendo perfuradas ou já
produzindo.
Mesmo que consigam enganar a
estatística, convivem com a memória dos acidentes já ocorridos, a correria, as
perdas. Daí vem a probabilidade da descompensação, da “piração” das drogas – ou
sem elas – e se soma à angústia de não estar “em casa”, ou pior, ao estranho
sentimento de não ter de fato uma casa como a maioria tem. Depois, no final do
seu tempo de embarque, “descem”.
Na volta, o mesmo itinerário da
vinda, que pode durar um, dois dias ou mais para chegar lá onde moram seus
familiares. Sua “casa” – para eles um conceito totalmente distinto do que é
para cada um de nós, trabalhadores, digamos, normais. E lá ficam, se
readaptando a cada vez, durante duas ou três semanas. Ou mais, dependendo de
quem os contratou, de como sejam contabilizadas as férias e os demais “bônus”.
Esses são os extraordinários
sujeitos da minuciosa pesquisa feita durante quinze anos por Marcelo
Figueiredo, que conhecemos como “Parada”, engenheiro civil, doutor em
Engenharia de Produção e professor de Engenharia de Produção na Universidade
Federal Fluminense.
Talvez a mais memorável e
rigorosa pesquisa já feita no país sobre aqueles que tocam o dia-a-dia da
importantíssima indústria petrolífera, de onde ela tira seus lucros fabulosos.
Pode ser considerado um esforço épico sobre a tecnologia e as relações de
trabalho, como foi o livro dos professores britânicos Charles Woolfson, John
Foster e Mathias Beck, um estudo monumental sobre a grande tragédia – anunciada
e que podia ser evitada, mas não foi – do incêndio e destruição da plataforma
Piper Alpha no Mar do Norte, em 1988, que resultou em 167 mortes (ver na
bibliografia indicada).
O amigo “Parada” não escolheu
seus assuntos por mero diletantismo – como tantos outros que abordam as
maravilhas tecnológicas da empresa X ou Y, as promessas do “off-shore” e do
“pré-sal” etc. Nem foi por conveniência acadêmica ou do inefável apoio
empresarial, pelo contrário, seus temas não estão nas chamadas áreas
prioritárias daqueles editais novidadeiros e doutrinários feitos pelas agências
oficiais de fomento à pesquisa e pelas próprias empresas. Estas, aliás, não
gostam nada de ver “gente de fora” enquadrando e esmiuçando os seus problemas
graves, menos ainda se estiverem ligados aos trabalhadores e aos seus
sindicatos. Temas relevantes e oportunos que o público pode agora ler, reler,
estudar e recomendar, graças à persistência do autor e de seus colaboradores, e
graças à ousadia da Editora daquela universidade pública.
“A face oculta do ouro negro” é
um título curioso e chamativo, que me incentiva a fazer alguns comentários, uma
desconstrução e uma releitura. O ouro é um metal praticamente indestrutível e,
uma vez retirado da terra por mãos pobres, vai passando para mãos cada vez mais
ricas. Mesmo quando enterrado ou perdido num naufrágio, não desaparece.
O petróleo é um chorume, similar
àquele caldo escuro que brota em todos os lixões e aterros sanitários, com alta
carga orgânica e contaminante. Um chorume das eras geológicas passadas,
quatrilhões de toneladas de biomassa – algas, plânctons, crustáceos, peixes,
plantas – sepultados sob as rochas sedimentares. Mesmo asfixiada e em meio à
água salobra, a maçaroca morta vai lentamente fermentando, formando um coquetel
oleoso, pegajoso, produzindo gases (metano, hidrogênio e alguns outros),
acumulando traços ou proporções importantes de enxofre, de nitrogênio e seus
compostos, de metais pesados.
Um chorume venenoso e valioso,
que se tornou essencial, por causa dos seus “derivados” (dos mais viscosos,
asfalto, piche, óleo combustível, óleo diesel, aos mais ralos e voláteis,
gasolina, querosene, gás liquefeito). Essencial para o sistema capitalista, que
fez crescer incrivelmente as demandas de combustíveis para transportes, para
geração de eletricidade, para fabricar metais, cimento, vidro, compostos
químicos, para a vida doméstica e a indústria da guerra.
No mesmo início do século XX,
quando o patriarca dos magnatas Rockefeller disse que o petróleo era o melhor
negócio do mundo, o político inglês Churchill, comandando a Marinha britânica,
decidiu que os seus navios deveriam ser equipados com caldeiras queimando óleo
de petróleo – ao invés do incômodo e ineficiente carvão mineral. Assim,
ficariam mais rápidos, poderiam carregar canhões mais mortíferos e serem mais
facilmente abastecidos nos sete mares.
Desde então, as guerras em sua
maioria foram por causa da posse das reservas e do controle das rotas do
petróleo; mesmo quando não tiveram essa motivação, todos os lados combatendo
precisaram gastar muito petróleo, para ganhar ou para perder.
É assim: o ouro negro é o mais
valioso dos chorumes, mas só vale quando é coletado, vendido, processado,
amplamente distribuído e novamente vendido para ser enfim queimado.
O chorume essencial do
capitalismo alimenta então um lucro fabuloso e garantido por muitos anos aos
seus conquistadores – nem sempre seus donos legítimos, quase sempre tentando
escapar do Estado onde fica o subsolo rico, ou subjugá-lo.
O alto lucro e a vitória na
guerra econômica e territorial têm dois sinônimos obrigatórios, em todo o
mundo: poder e impunidade. Que se manifestam em cada pormenor cotidiano nas
maiores empresas dessa indústria, e em todas as suas relações com o restante da
sociedade: com os seus próprios trabalhadores, com as numerosas empresas
contratadas e subcontratadas, com seus vizinhos, quase sempre incomodados,
enganados, prejudicados, ameaçados, atingidos.
Aproveito para registrar que, nas
regiões petrolíferas sul-americanas, a ação das poderosas e impunes
“petroleiras” está muito bem registrada nos informes da agência argentina
“Observatório Petrolero Sur”, no livro de Suzana Sawyer sobre as corporações
norte-americanas Arco e a italiana Agip, tecendo a sua “anti-política” na
Amazônia equatoriana, e nos informes compilados por Jean-Pierre Leroy e
Julianna Malerba sobre a atuação da Petrobrás nos países vizinhos (ver
bibliografia).
Os aspectos mais negativos do
poder, sua arrogância, seu maniqueísmo primário, sua crueldade e as sequelas
mais absurdas e injustas da impunidade eclodem e ficam visíveis nas ocasiões
dos acidentes – que não são fatalidades e que sempre poderiam ser evitados ou
minimizados. Que sempre deveriam ser apurados e responsabilizados.
É o que se pode deduzir, sem
errar, da investigação pormenorizada que o professor Figueiredo fez dos maiores
acidentes no “off-shore” do litoral norte fluminense, todos com vítimas fatais,
ocorridos nas plataformas de Enchova e de Namorado-1, na P-07, na P-34 e
especialmente, a explosão, adernamento e naufrágio da P-36 no início de 2001.
O seu trabalho de reconstituição,
utilizando-se de documentos empresariais e de governo, de depoimentos de
sobreviventes, de plantas e desenhos técnicos, apoiados em importantes autores
da Engenharia, da Ergonomia, da Psicologia, é comparável à investigação
jornalística feita por Greg Palast sobre os grandes acidentes na indústria
petrolífera norte-americana: a colisão do super-navio tanque Exxon Valdez com
um recife e o vazamento de metade de sua carga no litoral do Alaska e a
explosão e incêndio da Deepwater Horizon, da empresa suíça Transocean a serviço
da British Petroleum, com vazamento durante muitas semanas atingindo o litoral
do Golfo do México. Não é sem motivos que Palast descreve esses e alguns outros
dramas como resultantes do “piquenique dos abutres” (ver na bibliografia).
Enfim, a única “face oculta” que
existe mesmo nesse mundo é a da Lua, como resultado de uma particularidade
geométrica e dinâmica do Sistema Solar. Ninguém decidiu ocultá-la. Mesmo assim,
para se conseguir ver essa face oculta, teve que se aguardar os satélites
artificiais e as viagens espaciais, e ainda há quem duvide...
Na indústria petrolífera e em
especial no “off-shore” do norte fluminense, há muita coisa deliberadamente
elidida, escondida, dissimulada, como se fosse possível apagar da história
humana o trabalhador como sujeito, como portador e agente de direitos políticos
e humanos.
Sim, o trabalhador como detentor
de conhecimento objetivo, sensível e acumulado sobre a produção, como
personagem central da produção e como vítima principal dos riscos inerentes,
que estatisticamente levam à doença, à mutilação, à loucura, à morte.
Como se fosse possível apagar os
rastros da coerção, do assédio e do arbítrio que caracterizam a extração de
mais valor, a superexploração do trabalho pelo capital.
Não duvide: essa é a face
ocultada do chorume essencial do capitalismo. Os livros aqui indicados prestam
o enorme serviço de ajudar a desocultar.
Referências bibliográficas
mencionadas:
LEROY, Jean-Pierre e MALERBA,
Julianna (eds). “Petrobrás: integración o explotación?” Rio de Janeiro: FASE-
Projeto Brasil Sustentável e Democrático, 2005.
Observatorio Petrolero Sur:
http://www.opsur.org.ar/blog
PALAST, Greg “Vultures’ picnic : in pursuit of
petroleum pigs, power pirates and high-finance carnivores” New York: Dutton,
2011
SAWYER, Suzana
“Crude Chronicles. Indigenous politics, Multinational Oil and
Neoliberalism in Ecuador” Duke University Press , Durham &London, 2004
WOOLFSON, Charles., FOSTER, John., BECK,
Mathias “Paying for the Piper . Capital and Labour in Britain’s Offshore Oil
Industry”, Mansell Publishing Ltd. London, 1997.
Nota:
1. SEVÁ Fo. A.O. “A face ocultada
e o chorume essencial” Prefácio, pp.13 - 17 de FIGUEIREDO, M. G. "A face
oculta do ouro negro: trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera
offshore da Bacia de Campos", Editora da UFF, Niterói: 2012, ISBN
978-85-228-0777-2.
Oswaldo Sevá Filho é professor
aposentado da Unicamp, onde trabalhou por 20 anos na área de Energia e
atualmente colabora no Doutorado em Ciências Sociais; entre 1992 e 2001 atuou
como assessor de sindicatos de petroleiros em SP e no RJ, nas questões de
segurança do trabalho e meio ambiente.
Fonte : site correio da cidadania
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