João Paulo Stuart
PCB- Evento emblemático aconteceu em São Paulo na semana em que, a 13 de
dezembro, completaram-se 44 anos do Ato Institucional número 5 (AI-5), que
fechou o Congresso Nacional e acirrou a repressão e a tortura da ditadura civil
militar instalada no Brasil pelo golpe de abril de 1964. Em seu encontro anual,
a Associação Brasileira da Indústria Química (ABIQUIM), fundada no ano do
golpe, contratou palestra de Delfim Netto, signatário do AI-5, sobre
perspectivas da economia brasileira.
Economista formado pela USP em
1952, Delfim participou com destaque de todos os governos ditatoriais, de
Castello Branco (1964-1967) à Figueiredo (1979-1984), tendo sido ministro da
Fazenda com Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1973).
A ação do Estado sob a ditadura
e, mais especificamente, sua orientação na economia, indicam como central o
aspecto repressivo, subordinando o que muitos identificam como caráter
“indutor” de um Estado que buscava orientar os rumos da economia.
De forma muito direta, Delfim
Netto sintetizou esta orientação repressiva em sua breve declaração de voto, no
dia 13 de dezembro de 1968, favorável ao AI-5:
“(...) Eu creio que a revolução
veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas,
principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de
estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico. Este é realmente o
objetivo básico. Creio que a revolução, muito cedo, meteu-se numa
camisa-de-força que a impede, realmente, de realizar esses objetivos. Mais do
que isso, creio que, institucionalizando-se tão cedo, possibilitou toda a sorte
de contestação (...). É por isso, senhor presidente, que eu estou plenamente de
acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E, se Vossa
Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente. Eu
acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência, ao
presidente da República, a possibilidade de realizar certas mudanças
constitucionais, que são absolutamente necessárias para que este país possa
realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez. Eram essas as considerações
que eu gostaria de fazer.”
De certa forma, a exacerbação dos
poderes concentrados no Presidente da República que advogava Delfim, deve ter
contribuído para seu apoio à sanha repressiva fora de qualquer amarra
institucional que teve na Operação Bandeirantes (OBAN) sua síntese perfeita: o
poder repressivo comandado e financiado diretamente pelos donos do capital, sem
mediações, e executado pelos agentes fardados do Estado, com inteligência da
CIA.
O excelente documentário “Cidadão
Boilesen”, lançado em 2009 e dirigido pelo cineasta Chaim Litewski, mostra a
estruturação e o financiamento por empresários e banqueiros paulistas da OBAN,
centro de investigações e torturas montado pelo Exército brasileiro em 1969
para combater organizações de esquerda que confrontavam o regime ditatorial. A
OBAN foi o laboratório que geraria, pouco tempo depois, o DOI-CODI
(Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa
Interna).
O caso de Henning Boilesen, o
cidadão Boilesen do título, é exemplar. Dinamarquês naturalizado brasileiro,
trabalhou durante 19 anos no grupo químico Ultra, tendo sido presidente da
Ultragaz. Anticomunista ferrenho, ligou-se a grupos militares e paramilitares
e, sádico, tinha prazer especial em acompanhar sessões de tortura.
Segundo Elio Gaspari, a primeira
reunião organizada para captação de recursos para a OBAN foi convocada por
Delfim Netto e contou com a participação de 15 empresários, em sua maioria
banqueiros, como Gastão Bueno Vidigal, dono do banco Mercantil de São Paulo (A
ditadura escancarada, p. 61-62).
O banqueiro Vidigal era também
presidente do ainda hoje elitista clube Paulistano. Lá, às quintas-feiras,
costumava promover almoços com empresários e não raro convidava Delfim Netto,
então ministro da Fazenda, para apresentar análises de conjuntura econômica e
responder a perguntas dos presentes. Ao final da palestra, eram recolhidas as
colaborações para a OBAN.
Pery Igel, dono do Grupo Ultra e
patrão de Boilesen, foi certamente um dos mais destacados financiadores da
OBAN, ao lado de executivos das montadoras de automóveis estadunidenses Ford e
General Motors, e da empreiteira Camargo Correa.
Boilesen foi assassinado em 15 de
abril de 1971, em São Paulo, numa ação conjunta envolvendo militantes da ALN
(Ação Libertadora Nacional) e do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes).
Delfim compareceu ao enterro e levou consigo Roberto Campos, amigo de ambos.
Panorama do “modelo” brasileiro
sob o Estado repressor
Delfim foi o operador do modelo
econômico da ditadura, num contexto em que as corporações industriais dos EUA
buscavam expandir seu domínio sobre a América Latina, para enfrentar a
crescente concorrência das corporações europeias reconstruídas no pós II Guerra
e barrar o avanço da influência política dos países comunistas.
A entrada das transnacionais na
economia brasileira representa um novo deslocamento dos centros de decisão, do
Estado para estas empresas privadas. O Estado deixa de ser o ponto de
confluência das tensões políticas que condicionam a orientação do desenvolvimento
e, posto que essa passa ao controle das transnacionais, o Estado torna-se mero
gestor técnico e, sobretudo, um órgão repressivo. Nas palavras precisas de
Celso Furtado:
“(...) as grandes empresas
norte-americanas terão necessariamente que transformar-se em um superpoder em
qualquer país latino-americano. Cabendo-lhes grande parte as decisões básicas
com respeito à orientação dos investimentos, à localização das atividades
econômicas, à orientação da tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao grau
de integração das economias nacionais, é perfeitamente claro que os centros de
decisão representados pelos atuais estados nacionais passarão a plano cada vez
mais secundário. (...) Em realidade, se se consegue subtrair ao Estado grande
parte de suas funções substantivas na orientação do processo de desenvolvimento
econômico e social, seria de esperar que a atual ‘fermentação’ política, que
caracteriza muitos dos países latino-americanos, tenda a reduzir-se, passando
os governos a atuar principalmente no plano técnico. (...) Com efeito, a
penetração indiscriminada em uma estrutura econômica frágil de grandes
consórcios, os quais se caracterizam por elevada inflexibilidade administrativa
e grande poder financeiro, tende a provocar desequilíbrios estruturais de
difícil correção tais como maiores disparidades de níveis de vida entre grupos
da população e rápida acumulação de desemprego aberto e disfarçado. (...) O
resultado último seria um aumento real ou potencial das tensões sociais na
América Latina. Como as decisões econômicas de caráter estratégico estariam
fora do alcance dos governos latino-americanos, tais tensões tenderiam a ser
vistas, no plano político local, tão somente pelo seu ângulo negativo. A ação
do Estado teria que ser de caráter essencialmente repressivo.”
(Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, p. 44 e 45).
Como resultado, aprofundam-se a
inadequação tecnológica e os efeitos da existência do excesso estrutural de
trabalhadores disponíveis: os salários permanecem determinados pelo custo de
reprodução da população do campo – agravado pela interrupção da reforma agrária
– e, portanto, há concentração de renda, que condiciona a estreiteza do mercado
face aos problemas de escala de produção. Por isso, a concentração de renda é
pressuposto e resultado do processo e gera agravamento das tensões sociais e a
necessidade de repressão política. Daí, a confluência entre o sentido da
política econômica de Delfim e a repressão da OBAN financiada pelo empresariado
paulista.
O modelo econômico da ditadura é
implantado logo nos primeiros meses após o golpe, e pode ser analisado a partir
das reformas contidas no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG),
inicialmente elaborado por Roberto Campos e Octávio Bulhões. O sentido
principal do PAEG era adequar o marco institucional ao deslocamento dos centros
de decisão, às necessidades das transnacionais – coadunar estabilização
política e econômica por meio do vínculo entre militares e tecnocratas. Para
isso, realizou reforma fiscal instituindo sistema tributário regressivo para
compensar o déficit público com redução do consumo, notadamente dos
trabalhadores; e reforma trabalhista que consistiu em arrocho salarial –
através de política salarial que substituía as negociações coletivas por
índices de reajuste determinados pelo governo –, fim da estabilidade no emprego
e, sobretudo, intervenção e repressão política aos sindicatos.
O PAEG completava-se com uma
reforma monetária e financeira que, com a desculpa de aumentar a poupança,
significou a abertura da economia nacional ao sistema financeiro internacional:
fim da lei da usura que estabelecia teto às taxas de juros e flexibilidade para
instituições financeiras e empresas captarem recursos fora do país. O resultado
de tamanha flexibilização é o mesmo que verificamos com a eclosão da crise de
2007 nos EUA e Europa: estavam colocadas as bases institucionais para a
escalada do endividamento externo posterior, que lançaria o Brasil na longa
década de estagnação de 1980.
Os resultados do PAEG, portanto,
só poderiam ser a concentração de renda, pela queda dos salários reais, e o
estreitamento do vínculo do sistema econômico nacional com o sistema financeiro
internacional, que viabiliza o financiamento das transnacionais e as remessas
de lucros para suas matrizes no estrangeiro.
A partir destas “contra-reformas
de base”, pavimentou-se o caminho para a gestão de Delfim Netto na economia
durante o governo Médici, os anos do chamado “milagre econômico”, que cabe
aqui, brevemente, recuperar em seu sentido mais amplo. Tratava-se de fazer
avançar a industrialização fundada na mimetização dos padrões de consumo (bens
duráveis) combinado a uma necessária mudança no perfil da demanda através de
transferências de renda dos trabalhadores às classes médias mais elevadas para viabilizar
um mercado ao novo padrão de industrialização. Para tanto, expandiu-se o gasto
público e o crédito ao consumo das classes médias via nexos com o sistema
financeiro internacional e aumentou a pressão pelo rebaixamento dos salários.
O “milagre” resultou em aumento
da concentração de renda e crescimento desproporcional da produção de bens
não-duráveis, que estimulou importações igualmente excessivas de bens de
capital (máquinas e equipamentos para a indústria), que expressam o nexo das
filiais brasileiras das transnacionais com as unidades produtoras de tecnologia
no exterior.
A cópia dos padrões de consumo
(mimetização) leva a um crescimento econômico que reproduz os mesmos
desequilíbrios: supõe e reproduz a concentração de renda nas classes médias para
consumirem os automóveis, as geladeiras, as televisões, e o endividamento
financia o crescimento do consumo e das importações de bens de capital sem
elevar a capacidade de autotransformação do sistema. Em suma, na análise
precisa de Celso Furtado, a velha herança colonial se atualiza: dependência e
subdesenvolvimento reforçam suas conexões fundamentais.
O ato final da gestão econômica
da ditadura foi o II Plano Nacional de Desenvolvimento, uma resposta à crise
gerada pela elevação do preço do petróleo e que procurava enfrentar os
estrangulamentos causados pelo déficit comercial e avançar na industria de bens
de capital e intermediários, tentando reorientar a inserção externa da economia
brasileira para a exportação de produtos industrializados. Para isso, o II PND
contou com elevação do financiamento público através das estatais e mais
concentração de renda para viabilizar investimentos. Gasto público para
empresas privadas e repressão sempre caminhando juntos.
O II PND acirrou a mimetização
dos padrões de consumo e a dependência tecnológica e financeira, resultando em
aumento do endividamento e das importações necessárias à reprodução desse
padrão de industrialização, em total consonância com as estratégias das
transnacionais.
Eis o legado da gestão econômica
de Delfim: a política econômica torna-se função da reciclagem da crescente
dívida externa acumulada no período; as garantias cambiais ao fluxo financeiro
retira autonomia da política cambial; política de subsídios para o setor
exportador retira parte da autonomia da política fiscal; endividamento
manipulado por instituições financeiras comprometem o controle do Estado sobre
a liquidez e retiram autonomia da política monetária. De forma estrutural, a
centralidade do endividamento e a perda de autonomia da política econômica
tornam a economia brasileira prisioneira da política monetária dos EUA. A crise
da dívida dos anos 80 foi o destino desta marcha da insensatez.
O modelo econômico da ditadura
significou, em síntese, a consumação do deslocamento dos centros de decisão em
favor das corporações transnacionais e do sistema financeiro
internacionalizado. Isso potencializou os desequilíbrios estruturais herdados
do período precedente: dependência tecnológica e financeira e concentração de
renda – na base da inadequação tecnológica e da mimetização dos padrões de
consumo. Há crescimento, mas não desenvolvimento. O Estado – não mais centro de
decisão – tornou-se órgão técnico para gerir o modelo ditado pelas
transnacionais e órgão repressivo para sufocar os conflitos políticos daí
decorrentes. O saldo foi o crescimento momentâneo, funcional à
transnacionalização produtiva e financeira, e subordinada à política dos EUA; a
crise da dívida no momento de reversão da política econômica dos EUA; e duas
décadas posteriores de estagnação. Evidentemente, o modelo corroeu as bases da
sociabilidade no Brasil e fez avançar a barbárie.
Em resumo, Delfim Netto ainda é
aquele
Que Delfim siga sendo referência
para o empresariado no Brasil não é de espantar. Causa espanto, entretanto, que
sindicatos de trabalhadores e lideranças políticas que sofreram com a repressão
da ditadura o tenham como analista progressista da economia. Causa
estranhamento que tenha espaço para publicar artigos numa revista que se propõe
crítica e contra o arbítrio, como Carta Capital.
Delfim apresenta-se hoje – como o
fez no encontro da ABIQUIM – como defensor do modelo de desenvolvimento
estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que ele define como tendo
objetivo de “melhorar o padrão de vida numa sociedade aberta” em que se soma
Estado e economia de mercado. Para Delfim, República significa todos os
cidadãos sujeitos à lei, “sob comando do STF”; democracia resume-se a eleições
periódicas e justiça social equivale a igualdade de oportunidades num ambiente
de plena liberdade de iniciativa e garantia de apropriação privada dos direitos
daí decorrentes.
A hegemonia do capital sobre o
Estado e o trabalho, resultado de anos de ditadura e propaganda ideológica
liberal, fez enfraquecer a contestação sindical e popular ao modelo econômico
brasileiro, ao passo que naturalizou o caráter repressor do Estado, fazendo-o
prescindir de aparatos clandestinos como a OBAN.
A Comissão Nacional da Verdade,
instalada em março de 2012 pela presidenta Dilma Rousseff, deveria convocar
Delfim Netto para que fale sobre sua participação no financiamento à OBAN. O
exemplo já foi dado pela Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, de São
Paulo, que aprovou convocação de Delfim em agosto de 2012, seguindo sugestão do
advogado Fabio Konder Comparato: “A comissão municipal da verdade não deve se
limitar a ouvir advogados, deputados e agentes políticos. O objetivo dela deve
ser desmoralizar a oligarquia dominante, os empresários coligados a militares.
É preciso mostrar o caráter hediondo da tortura, pois é isso que acaba
desmoralizando. Além disso, a tortura continua acontecendo nas delegacias”.
A Comissão Nacional tem manifestado
que pretende dar atenção e identificar os rastros do financiamento da OBAN
pelos banqueiros e industriais paulistas. Se assim fizer, legará um serviço
inestimável ao Brasil, sobretudo aos que hoje enfrentam os mesmos grupos
econômicos forjados e impulsionados pelo Estado repressor de Delfim. Sejam os
grupos nacionais – como o Ultra de Boilesen e Igel, e a Braskem, braço
petroquímico da empreiteira Odebrecht, criado no final da década de 1990 no
rastro das privatizações de FHC e que hoje monopoliza importantes segmentos
industriais no setor – sejam os transnacionais: a alemã BASF, maior indústria
química global, que no Brasil fatura alto com os agrotóxicos que produz, assim
como Monsanto, Bayer, Syngenta, entre outros.
Talvez o rastro que ligue o
Estado repressor às fabricantes de agrotóxicos possa também ser explicado por
Delfim, nem tanto por sua breve passagem de quatro meses como ministro da
Agricultura no governo Figueiredo, mas pela subordinação da economia nacional
aos interesses do capital estrangeiro que impôs ao Brasil como agente do Estado
repressor. Esta orientação impulsionou a mal chamada “revolução verde” no
campo, o que deu as bases para o agronegócio que hoje é comandado pelos grandes
produtores de commodities, como soja, pelas transnacionais fabricantes de
agrotóxicos e sementes transgênicas, e pelas corporações que comercializam as
exportações para o resto do mundo.
Para manter a hegemonia deste
modelo de crescimento econômico fundado numa agricultura dependente de
quantidades cada vez maiores de agrotóxicos – que afetam a saúde do solo, dos
trabalhadores rurais e dos consumidores – as indústrias utilizam diversos meios
de propaganda. Por exemplo, no Carnaval carioca de 2013, o desfile da Vila
Isabel será bancado com 18 milhões de Reais por uma transacional alemã
fabricante de agrotóxicos.
Delfim, a barbárie e o
capitalismo dependente seguem sendo os mesmos no Brasil. Até quando?
João Paulo Stuart é escritor.
Boilesen, o sádico, e Delfim
Netto, o cínico.
Fonte: site PCB
Nenhum comentário:
Postar um comentário