Gabriel Brito e Valéria Nader-
Novamente às voltas com problemas
no setor energético, que já vêm gerando grande número de cortes no fornecimento
à população, o país discute as possibilidades da repetição do racionamento de
energia. A exemplo de 2001, ainda sob o mandato de FHC, o tema parece ganhar
contornos decisivos em ano eleitoral, com o adicional da MP 579, editada em
setembro de 2012 sob promessas, já esvaídas, de redução nos preços da tarifa.
O Correio da Cidadania voltou a
conversar com o engenheiro e professor da USP Ildo Sauer, ex-diretor de energia
e gás da Petrobras, e um dos planificadores da política energética que integrou
o programa político petista no triunfo eleitoral de 2002. Num resumo inicial de
Sauer, o que vemos agora é a consequência da não aplicação de tal plano,
mantendo-se a estrutura liberalizante dos anos 90 e a preservação dos
interesses particulares, que dominam completamente as movimentações dos
políticos do setor. Tudo, há mais de dez anos, como faz questão de ressaltar, sob
a égide da atual presidente e ex-ministra das Minas e Energia.
“Não se desmontou a máquina de
aumentar custos e nem as enormes transferências para os grandes consumidores de
energia, muito menos os benefícios pagos a muitas empresas privadas que têm contratos
altamente favorecidos para construir usinas térmicas. Dilma, então, promoveu um
populismo de baixar a tarifa, sem baixar custos, ao preço da destruição do
patrimônio público. Perdem as estatais e perdem-se créditos do Tesouro
Nacional”, destacou Ildo.
Prova cabal do que seria uma
lamentável falta de planejamento do setor estaria sendo dada pelas duas usinas
do Rio Madeira, construídas com grande apoio oficial, agora em ‘conflito’.
“Tudo decorre da falta de um sistema de planejamento, do sistema de gestão, de
fiscalização prática. É nítido. Fazem um sistema de baixa qualidade e cobram
preço de alta qualidade. Depois vemos ministro dizer que, se quisermos mais
qualidade, temos de pagar mais ainda”, arremata Sauer, para quem um coerente
aproveitamento do potencial hidráulico e eólico dispensaria o açodamento na
construção das grandes e controversas usinas (Belo Monte incluída).
Ildo Sauer não vislumbra um
quadro animador, uma vez que outros modelos de condução do setor não entram em
debate. Uma vantagem para os atuais dirigentes do setor, que poderão “empurrar
todos os problemas com a barriga, independentemente do custo, para chegar ao
fim de outubro sem ter de fazer racionamento”. Mas “se o governo tiver de fazer
um profundo racionamento depois, fará”, conclui o engenheiro.
Correio da Cidadania: Em
entrevista ao Correio no ano passado, você já discorria longamente sobre o
planejamento público lesivo a empresas estatais geradoras de energia como
Chesf, Furnas e Eletronorte, fortemente impactadas pela política de renovação
de concessões em troca do corte de tarifas – o que acabaria por beneficiar
grandes consumidores e prejudicar o tesouro e a sociedade. Em que medida esse
fato está hoje presente nos últimos episódios do país, de seca, falta de água e
apagões disseminados e localizados?
Ildo Sauer: De fato, a crítica
que fizemos de 2012 pra cá, sobre a tentativa de artificialmente reduzir
tarifas sem baixar custos, e ao mesmo tempo descapitalizando, fragilizando e
até destruindo as perspectivas de empresas de grande porte – Chesf, Furnas e
outras federais –, tem a ver com o reconhecimento de que o sistema energético
brasileiro – neste caso elétrico – vem sendo fragilizado continuadamente desde
o final dos anos 90, quando se prometeu a liberalização e depois um choque, com
o racionamento de 2001.
Criou-se um conjunto de propostas
capazes de reordenar o sistema, reequilibrá-lo, promover a utilização eficiente
dos melhores recursos naturais, tecnológicos e humanos disponíveis e ao mesmo
tempo equilibrar a destinação dos benefícios. Isto é, uma energia de menor
custo, com recursos naturais pertencentes à nação, poderia, de um lado,
beneficiar o sistema produtivo em geral e, de outro lado, gerar um excedente
econômico capaz de ser utilizado socialmente para reduzir as assimetrias. Essa
é a síntese da proposta de 2002, da Frente Brasil Popular, mas não foi
implementada. Pelo contrário, o setor energético, em geral, e elétrico, em
particular, se tornaram instrumento de barganha do novo governo, pra construir
uma base de apoio político e econômico. Político no sentido pequeno,
partidário, de grupos. E se aprofundou a cupinização do espaço público nas
empresas, quando então os grupos de interesse, de partidos e políticos,
passaram a se entranhar na gestão, o que já vinha acontecendo em governos
anteriores, servindo-se do setor como espaço de negociação para coisas
publicamente inexplicáveis.
Há dois grupos de interesses que
se digladiam ali, mediados sempre por grupos políticos. De um lado, os grandes
consumidores, que querem energia, se possível, sem custo algum, ou com custo
muito baixo. Era o que estava na base do anúncio da MP 579, que de certa forma
respondeu a chantagens, em maior grau da FIESP, em menor grau da Firjan. Além
do mais, digladiam-se dentro do espaço de tais empresas os interesses daqueles
que querem se beneficiar dos contratos, na construção de usinas, na obtenção de
concessão das próprias usinas ou ainda dos contratos das usinas. Portanto, de
um lado os consumidores, de outro, as empresas envolvidas. Já o governo agia
especialmente sob a liderança da ministra das Minas e Energia de 2003, que,
depois de ter prestado serviços a tais interesses em jogo, se colocou como
alternativa para assumir a própria presidência.
O espaço da energia tem essa
condução, diferente de outros espaços econômicos onde o capitalismo ganha de
forma mais ou menos concorrencial, obtendo lucros médios que se dividem entre
os respectivos atores concorrentes. Em setores onde há recursos naturais com
vantagens comparativas, com o patrimônio já amortizado ou em vias de
amortização, como é o caso dos 15 mil Megawatts (MW) de usinas construídas da
década de 40 pra cá (patrimônio público), tais espaços são disputados. Porque o
megawatt/hora (MW/h) é um bem de valor enorme, que na média das novas usinas
está custando 100 reais e, quando elas estão amortizadas, têm como único custo
maior o de capital. Assim, só restam os custos das operações de manutenção, que
ficam entre R$ 10 e R$ 15 o MW/h. Mas o governo, na MP 579, obriga, por exemplo,
Furnas e Chesf a venderem energia a um custo menor, entre 7 e 10 reais o MW/h,
mais os impostos. Isso não paga nem a operação adequada, muito menos a
manutenção. E o benefício dessa energia, que no mercado teria um valor de
reposição maior que 100 reais, acabou entregue, de um lado, aos grandes
consumidores e, de outro, aos consumidores residenciais, de uso final.
Mas o benefício é proporcional ao
uso, e o uso é proporcional à renda – lembrando que há muitos brasileiros que
nem energia elétrica têm.
Correio da Cidadania: Desse modo,
em vez de se caminhar para um planejamento racional e justo, acabaram por se
beneficiar do modelo elétrico os grande consumidores?
Ildo Sauer: Digamos assim: o
abandono de um planejamento racional para expandir a oferta de energia, com
base nos melhores recursos naturais, e a promoção de leilão para atender
interesses de mais curto prazo, de barganha de grupos econômicos, além da
tentativa de repassar o benefício existente a tais grupos, faz a energia ir
para quem tem mais renda, pois são os que mais consomem. Sem esquecer que no
Brasil, apesar de muita propaganda de 10 anos pra cá, o Luz pra Todos ainda
deixa 2,5 milhões sem energia. Portanto, além de ser limitado o benefício
concedido, é regressivo socialmente, pois beneficia aquele que menos precisa,
mas que tem mais barganha e influência. Um desastre.
Correio da Cidadania: E como
associa a situação atual com a ausência de investimentos em energias
alternativas, como eólica e solar? Essas energias poderiam estar interligadas
ao sistema elétrico em alguma proporção, amenizando o atual desabastecimento?
Ildo Sauer: Sim, fora tudo isso,
desorganizou-se completamente a estrutura regulatória e jurídica, já precária,
do sistema energético. E aí vem: a não implementação da lógica proposta em 2003
fez o que? Fez a expansão da oferta se dar pela trajetória menos adequada.
Contrataram-se muitas usinas a
óleo combustível, diesel e mesmo gás natural, usinas a carvão, em detrimento da
necessidade das usinas hidrelétricas e/ou eólicas. Hidrelétricas seriam
preferíveis com usinas de maior acumulação, mas também não são uma necessidade
absoluta. Explico: não é difícil ter conhecimento de seu comportamento, com
base no histórico da hidrologia, que tem registros precisos de nossas bacias hidrográficas
desde 1931 (portanto, lá se vão 82 anos de registros precisos), mesmo sabendo
que o ecossistema de tais bacias se alterou. E com o mínimo de aporte de água,
ou seja, energia natural disponível quando a vazão dos rios é convertida nas
quedas, com o devido cálculo de disponibilidade elétrica a partir da construção
da usina, é possível saber qual contribuição, num período crítico, o sistema
hidráulico pode dar.
De outro lado, é possível saber o
que as usinas eólicas podem dar. E é possível saber como a demanda pode se
comportar no médio e longo prazo. É possível fazer estimativa combinando a
demanda máxima com o mínimo aporte da hidrologia nos períodos críticos, junto
com os ventos. É possível otimizar a expansão do parque térmico. Já o parque térmico
tem uma característica diferente da energia hidráulica. Na hidráulica e eólica,
o grande custo é o capital inicial. O vento e a água são combustíveis
praticamente gratuitos, num sentido mais direto. As usinas térmicas, pelo
contrário, têm um custo de capital em geral mais baixo, mas, quando usadas, têm
um custo de combustível elevado. E quando usadas por longos períodos, tais
custos se tornam extremamente mais caros.
Tipicamente, uma usina hidráulica
ou eólica, se bem planejada e construída, tem custo em torno de R$ 100 o MW/h.
As usinas térmicas (só de combustível, usinas a diesel ou gás natural
liquefeito importado), com a crise atual, em decorrência também do abandono das
nucleares no Japão, o que aumentou os preços, chegam a custar 800 reais, em
alguns casos até 1200 o MW/h. E o governo vem acionando tais usinas
continuadamente nos últimos dois anos.
Isso indica claramente que a
expansão foi feita de maneira equivocada, mostrando que faltam mais usinas
hidráulicas e eólicas, cujo dimensionamento, como explicado, pode ser feito de
maneira racional. Os resultados concretos, mostrados agora, indicam que nada
foi feito.
Correio da Cidadania:
Considerando essa falta de planejamento estratégico, e a ausência de tal
aspecto nos debates e noticiários, o governo se valeria da estratégia de usar
velhas justificativas a respeito dos contratempos do setor, quase que como uma
“falta de sorte”?
Ildo Sauer: O governo vem criando
uma competição para apostar se vai faltar energia ou não. Mas não diz que está
drenando os cofres públicos. Além de ter saqueado o patrimônio das estatais, e
os créditos do Tesouro junto a Itaipu, colocados para pagar as contas dos
combustíveis utilizados fora da ordem de mérito, por erro de planejamento, o
governo recorre a esses recursos para aportar dinheiro e pagar a conta
extremamente elevada de tais combustíveis, porque o parque elétrico, do jeito
que está, foi construído de forma equivocada, sem atender critérios de
planejamento. Tudo pra não repassar aos consumidores, porque houve o blefe, a
retórica, em setembro de 2012, de dizer que baixaria as tarifas. Não se
desmontou a máquina de aumentar custos e nem as enormes transferências para os
grandes consumidores de energia, muito menos os benefícios pagos a muitas
empresas privadas que têm contratos altamente favorecidos para construir usinas
térmicas. Isso tudo está de pé. Dilma, então, promove um populismo de baixar a
tarifa, sem baixar custos, ao preço da destruição do patrimônio público. Perdem
as estatais e perdem-se créditos do Tesouro Nacional.
Essa é a mesa de xadrez que está
colocada hoje no Brasil. Estamos ameaçados por um racionamento. O risco no
momento está muito acima do tolerável e confortável, porque a tarifa que
pagamos inclui remuneração de investimento capaz de garantir pelo menos 95% de
confiabilidade. E está claro hoje, pelos dados atuais dos reservatórios e
previsões de demanda e hidrologia, o que ninguém pode garantir, um risco de
racionamento em torno de 20%. Significa uma chance em cinco, quando o tolerável
seria uma em vinte. Este é o quadro, dentro do risco de não abastecimento.
Além disso, temos tido quedas do
sistema de transmissão, o que mostra que a manutenção preventiva, centrada em
confiabilidade, não é feita. O sistema de controle e fiscalização sociais sobre
a qualidade dos serviços tampouco é realizado, porque o sistema regulatório,
criado nos anos 90, no auge do neoliberalismo, visava apenas controlar tarifas
e criar parâmetros de medição independentemente da qualidade da energia, além
de ter um objetivo principal: proteger os investidores estrangeiros e aqueles
que compraram ativos durante a privatização do período de FHC e mesmo de Itamar
e Collor. O governo do PT manteve tudo de pé, não alterou a lógica e paga o
preço. Na verdade, quem paga o preço é a população, em todos os sentidos. Tem
uma energia de baixas confiabilidade e qualidade. E apesar de todos os arroubos
sobre promessas de redução tarifária, não se reduziu a máquina de aumentar
custos e de transferir benefícios a vários grupos econômicos. Assim, usa-se
dinheiro do Tesouro que deveria ir para outras finalidades sociais mais
adequadas, num país de enormes carências e assimetrias sociais.
É a grande tragédia que vivemos
hoje. E parece que o governo está em disputa contra a natureza. Inventa vários
culpados. “Ah, não está chovendo”. Como dito, a hidrologia tem previsibilidade.
Nem o comportamento da hidrologia e nem o do consumo estão fora do previsto. O
ministro vem dizer “se queremos mais segurança, o povo terá de pagar mais”.
Não. Num país que tem a 11ª tarifa do mundo, e recentemente era a 4ª, que tem
os melhores recursos naturais, humanos e tecnológicos (portanto, deveria ter
uma tarifa muito mais barata), o ministro diz que o povo tem de pagar mais se
quiser mais segurança. Ora, isso é uma chantagem e uma mentira técnica enorme!
Sabemos quanto pode chover e,
portanto, sabemos o que as usinas precisariam. Mas, como dito, não foi feito um
planejamento e temos um sistema de baixa qualidade energética, com regiões onde
ela cai e o abastecimento não é adequado, pois existem fatores de potência e
fatores harmônicos, que perturbam e danificam a qualidade da energia e dos
equipamentos - o que as pessoas não percebem. O governo disputa contra a
natureza, tentando transferir ao senso comum que o problema é da chuva. Não é
da chuva nem da hidrologia. Tudo que aconteceu era previsível.
E além de tentar culpar a
natureza e se tornar vítima de sua inclemência, sendo que temos a ciência, o
governo culpa um outro lado: a falta de licenças ambientais. Dá impressão de
que no Brasil quem concede licenças ambientais são a oposição e os sabotadores
do governo, não os órgãos ambientais que são deste mesmo governo há dez anos,
além da política ambiental, que também é deste governo. O governo cria falsos
adversários, a natureza e o sistema ambiental, sendo que a natureza e a demanda
são absolutamente previsíveis. Mas os adversários estão dentro do próprio
governo. E depois vemos seus membros na mídia reclamando. Os sistemas de
licenciamento são falhos e lentos, pouco eficientes, é verdade, mas seria pior
não tê-los.
O quadro é de absoluta
perplexidade. E ao mesmo tempo nota-se essa tentativa de perturbar a verdade e
criar falsos culpados. Coisa que, aliás, tem sido a maior competência da
senhora Rousseff ao longo de sua trajetória. Sua única preocupação sempre foi
apontar culpados a respeito das coisas que estavam sob sua responsabilidade e
davam errado. O fato é que, no fim da linha, depois de tantos anos, o único
culpado que ela vai encontrar é ela própria, em função de tudo que comandou no
setor energético, desde que Lula e o PT atribuíram a ela a liderança de tal
segmento.
Correio da Cidadania: Como um
grande projeto hidrelétrico, como Belo Monte, se situa neste debate, a seu ver,
e como imagina que entrarão em cena, a partir de agora, os lobbies que defendem
essa e outras usinas?
Ildo Sauer: Como já falamos de
outra vez, e vale recapitular: bastava o governo ter cumprido o que foi
pactuado, isto é, feito um mapeamento de todos os recursos, classificando-os e
ordenando-os segundo seu mérito técnico e econômico, e também atribuindo suas
restrições ambientais e sociais. Depois, descartaria aqueles de restrições
insuperáveis e ordenaria os demais, escolhendo-os na sequência.
As usinas do Rio Madeira estão
sob uma controvérsia absolutamente esdrúxula, na qual duas usinas
recém-outorgadas disputam queda, quer dizer, a altura de queda d’água entre uma
e outra usina. As duas foram licenciadas pela Aneel. O estudo hidrológico da
bacia é coisa que se faz há um século no mundo inteiro. E agora, no século 21,
duas empresas, tendo como consortes empresas estatais, apoiadas pelo governo,
conseguiram a proeza de dizer que Jirau e Santo Antonio estão em conflito, em
relação ao nível das águas e à descarga de uma delas, que está sendo afogada
pelo barramento da seguinte. É um sinal claro da grande confusão que vivemos.
Já Belo Monte, até hoje não
superou nem as minimamente prometidas compensações ambientais e sociais na
região. Se o plano adequado tivesse sido feito, em relação ao ordenamento dos
melhores recursos, já se teriam construído outras usinas hidráulicas, muito
mais usinas eólicas e menos térmicas, e Santo Antonio, Jirau e Belo Monte
ficariam fora da lista, ou talvez ficassem para o futuro. Assim como as demais
da Amazônia. Mas o governo Lula não fez sua obrigação entre 2003 e 2004,
contratou usinas a carvão em 2005, recebeu críticas e, como resposta, recorreu
aos projetos do governo FHC, em Santo Antonio e Jirau, e dos militares, com as
usinas da Amazônia, principalmente Belo Monte. Alterou pouco o volume dos
reservatórios e enfiou suas alternativas goela abaixo das populações locais.
Agora há as controvérsias.
Sabe-se também que, provavelmente, as subsidiárias da Eletrobrás, e a própria,
que participam do esquema de financiamento societário de Belo Monte, vão ter
prejuízo, porque a Eletrobrás receberá uma fração de cerca de 30% da energia,
por R$ 135 o MW/h, mais correção pelo IGP-M desde então, o que deve estar por
volta de 150 reais. Comprometeu-se a Eletrobrás, quebrada depois do ataque da
MP 579, que agora vai ter de comprar um terço da energia de Belo Monte, sendo
que no mercado poderá vender essa energia nova só por 100 reais. O governo
transferiu às estatais e ao BNDES, que tudo financia, os riscos financeiros e
econômicos dos projetos, nos quais as sócias privadas já têm seus lucros
garantidos. E mais: o risco de o projeto atrasar é da população, que fica sem a
energia. E por aí vamos.
O quadro do setor energético é
exatamente o contrário, a antítese, do que se podia esperar de um governo que
se proclamava democrático e popular. Não foi. Foi antipopular nesses casos, e
antidemocrático, ao recorrer a métodos autoritários e não ouvir ninguém,
impondo soluções que atendem apenas a certos grupos de interesses econômicos.
Além de políticos que se beneficiam indiretamente, através das mediações que
fazem em tais negócios.
Esse é o caráter dos grandes
projetos da Amazônia. E o governo ainda decidiu concluir a usina de Angra 3,
que custará duas vezes mais que usinas hidráulicas e eólicas que gerariam a
mesma energia. Além desse custo inicial redobrado, vai deixar 1000 toneladas de
combustíveis radioativos para as gerações futuras, por um período de dois
milênios.
Correio da Cidadania: Você fez
breve referência às linhas de transmissão de energia. O que dizer, mais
especificamente, da estrutura dessas linhas em todo este imbróglio?
Ildo Sauer: Fora o desequilíbrio
do parque de geração, expandido de maneira inadequada e insuficiente, em número
de usinas hidráulicas e eólicas (além das térmicas, que não seriam problema se
bem usadas), todo o problema, claro, é a necessidade de um sistema de
transmissão com redundância (que significa caminhos alternativos no caso de
perda de uma ou duas linhas ou subestações) capaz de manter o fluxo de energia
de uma região para outra, maneira pela qual um sistema como o brasileiro deve
operar. É uma tarefa complexa manter a estabilidade elétrica de tais sistemas, pois
estão sujeitos a perturbações. Mas elas se resolvem mediante reservas de
geração girante para assumir a carga toda vez que houver uma flutuação nas
várias regiões, tendo também um caminho alternativo das redes de transmissão.
É tudo planejamento. E não
adianta dizer que as linhas de transmissão não foram feitas. Temos 600
megawatts de usinas eólicas prontas que não entram, porque no processo de
licenciamento as transmissões não ficaram prontas. O projeto e construção de
usinas e linhas de transmissão inclui a necessidade do licenciamento ambiental,
que é de responsabilidade do governo, assim como toda a política ambiental.
Fora a preocupação que temos com a geração, com falta de usinas hidráulicas e
eólicas, hoje vemos nitidamente que o sistema de transmissão não foi expandido
adequadamente, com capacidade e reserva. E mais ainda, está nítido também,
especialmente nas linhas mais antigas, que não tem ocorrido a devida manutenção
preventiva, centrada em confiabilidade. Aviões, helicópteros e outros sistemas
complexos, como é o setor elétrico, têm um programa periódico para cada
determinado número de horas de operação. Os componentes críticos são revisados
e atualizados, voltando como se estivessem em estado novo. Isso nitidamente não
tem sido feito, pois não há fiscalização no setor de transmissão.
De outro lado, a geração e
transmissão permitem levar energia para várias regiões, até a entrada em um
grande centro de consumo, onde se tem sistemas de distribuição. Tais sistemas,
pelos apaguinhos e cortes regionais que têm ocorrido em muitas cidades, em
todos os períodos do ano, especialmente o de chuva, mostram que por lá também
não se fazem investimentos. E tudo decorre da falta de um sistema de
planejamento, do sistema de gestão, de fiscalização prática. Porque a Aneel
fica em Brasília, no gabinete. Não tem praticamente ninguém indo a campo,
olhando os parâmetros reais, fiscalizando, controlando, vendo os investimentos
e conferindo a qualidade na geração, transmissão e distribuição.
É um quadro nítido e
representativo do conflito no qual o sistema essencial ao país e ao seu modo de
vida é gerido e organizado pelo interesse dos grandes grupos econômicos e
grandes consumidores, em detrimento da população e do espaço público. É nítido.
Fazem um sistema de baixa qualidade e cobram preço de alta qualidade. Depois
vemos ministro dizer que, se quisermos mais qualidade, temos de pagar mais
ainda. Ficam anunciando que a energia caiu porque houve fogo, porque caiu um
raio, porque não teve licenciamento ambiental. Tudo isso causa perplexidade em
qualquer governo sério. Mas tal estratagema vai além da boa fé do senso comum,
a fim de se criar uma espécie de vitimismo, quando, na verdade, se trata de um
problema de responsabilização política, econômica e estratégica que deve ser
atribuído aos dirigentes públicos que nos levaram a um sistema caótico.
Correio da Cidadania: Como situa
os grandes distribuidores privados nesse esquema, vão ter mais lucros ou
prejuízo?
Ildo Sauer: Vamos às
estatísticas. Todos os anos, quando consultamos as empresas de maior
rentabilidade sobre o patrimônio líquido, encontramos uma maioria de empresas
do setor energético e do setor financeiro. E as de energia em geral causam
perplexidade. As empresas do setor elétrico, como a Petrobras, sempre tinham um
repasse de rentabilidade, e a Eletronorte, retorno negativo, prejuízo.
Depois da MP 579, o sistema
Eletrobrás vem apresentando enormes prejuízos, que acabarão cobertos pelo
Tesouro (em alguns casos, de forma essencial). Já as empresas privadas, mesmo
em situação de crise e baixa qualidade, têm alta rentabilidade, basta visitar
as estatísticas. É uma outra forma de fazer o diagnóstico de qual política e
jogos de interesses prevalecem no campo da energia.
O governo não tem grande poder em
interferir em setores concorrenciais, como alimentos, calçados, automóveis,
enfim, de consumo de massa, onde há certa oligopolização, mas também um pouco
de concorrência. No entanto, no setor de telecomunicações, energia elétrica e
petróleo, o governo tem poder de arbitragem, mas atende somente as barganhas de
sua base de apoio político, que por sua vez precisa disso para se beneficiar
junto aos setores econômicos que lhe dão suporte, em detrimento da população em
geral. Um quadro muito claro do que aconteceu já no começo do governo FHC, que
foi aprofundado no governo Lula e deteriorado definitivamente no governo
Rousseff, pois houve uma metamorfose da proposta que deu origem ao governo dito
democrático-popular, que mudaria radicalmente a visão sobre o setor energético.
Tal visão se metamorfoseou para atender o novo caráter que o governo assumiu.
Talvez fosse algo latente, mas não era proclamado. E nem hoje é proclamado.
É o quadro em que nos
encontramos. E há uma dificuldade enorme de mobilização das forças dos
atingidos pelos empreendimentos, dos consumidores que não têm energia, dos
cidadãos brasileiros que são donos das usinas hidrelétricas... Essas usinas
foram construídas ao longo de 5 ou 6 décadas, pelas gerações passadas.
Patrimônio que deveria ser usado no conceito de sustentabilidade, para melhorar
as condições das gerações futuras. Mas o governo de plantão as usa para apenas
convertê-las em butim de barganha em favor dos grandes grupos econômicos e
fazer um populismo político insustentável.
É difícil, portanto, agregar os
setores populares para a conscientização do que está acontecendo, para depois
transformar tais questões – ataques às populações atingidas, o desrespeito ao
meio ambiente, o desrespeito ao direito dos consumidores e a uma condição de
vida mais adequada e possível, a partir dos recursos de que dispõe o país – em
instrumento de mudanças efetivas. Porque as alternativas colocadas no debate
político, entre o retorno do neoliberalismo e o neoliberalismo petista, e
outras alternativas consideradas hegemônicas, têm dificuldade de contemplar tal
debate, e não geram alternativas para que a população possa vislumbrar uma
esperança de profundas mudanças.
Trata-se de algo que, aliás, não
é exclusividade do campo da energia. É uma perplexidade que perpassa os outros
setores do país, o qual, num quadro de premência da saúde e educação públicas,
com falta de hospital, de universidades e escolas de nível básico e médio, é
capaz de torrar bilhões em estádios, torrar 40, 50, talvez 60 bilhões de reais em
subsídios elétricos para grandes consumidores e grandes indústrias, que têm
grandes rendas.
Embora a reação exista, tem sido
insuficiente para fazer os governos retrocederem. Uma situação que exige
profunda reflexão do campo da esquerda, a fim de saber como pode ser efetiva
diante do processo eleitoral que se apresenta.
Correio da Cidadania: O que pensa
que deve decorrer daqui pra frente, caso chova o suficiente e caso isto não
aconteça? E como acha que tal governo vai chegar às eleições?
Ildo Sauer: O debate entre as
hipóteses de ter ou não ter racionamento, e a proclamação do governo, mentirosa,
de que o risco é zero (como disse o ministro Lobão, depois de reconhecer que o
risco existe), são lamentáveis.
Porque não é isso. O fato de não
ter racionamento não representa vitória. O fato de o sistema estar fora do
ótimo é uma derrota. Voltar a debater racionamento é uma vergonha, com os
bilhões de reais do patrimônio das estatais, do Tesouro e os subsídios dados
aos grandes... Aliás, mesmo que tais
grandes consumidores pagassem, a conta dos combustíveis queimados sem
necessidade, por falta de planejamento e implementação de usinas hidráulicas e
eólicas, com as respectivas linhas de transmissão, já é um desastre social,
ambiental, estratégico, econômico e financeiro, que deveria enterrar qualquer
governo.
Agora, o governo cria um falso
debate, dizendo que os “catastrofistas” anunciam um racionamento que não
haverá. E aí o governo “ganhou”. Não se trata disso, mas sim de uma derrota do
próprio debate, uma vergonha.
E como o governo não tomou as
providências de sua responsabilidade a tempo, temos de rezar para chover mais
daqui pra frente, o suficiente para que cheguemos inteiros em outubro/novembro,
quando as chuvas voltam - mesmo assim sob o custo de bilhões de reais queimados
e desperdiçados para que não tenhamos um racionamento e uma catástrofe maiores.
E ainda lamentável é que o
governo, ao reduzir as tarifas, indiretamente incentivou o aumento do consumo.
E não teve a coragem, por ter interpretado como risco político, de cumprir seu
dever ético, depois de abandonar, de 2003 pra cá, os programas de eficiência
energética, o Programa Nacional do Uso Racional de Energia Elétrica e o
Programa do Uso Racional de Derivados de Petróleo, Gás e Biocombustíveis – o
Procel e o Conpet. Se fossem bem usados os recursos, o nível de consumo seria
mais eficiente - a demanda, mesmo com maiores benefícios econômicos e sociais,
seria menor.
O governo age na emergência. Já
que não fez isso tudo de 2003 pra cá, deveria ter a humildade de vir a público
criar um programa emergencial de uso racional da energia. Poderia reduzir o
risco de racionamento e os custos enormes que o consumidor paga, com altos
impostos, chegando a 450 reais o MW/h. O governo, só pra gerar energia, tem um
custo, com as térmicas, de R$ 800 a R$ 1200, nas últimas usinas que ainda
operam, além dos custos de transmissão e distribuição, o que eleva a conta
adicionalmente em 30%. E a conservação de energia, mediante vários programas
possíveis na indústria e no setor público (na iluminação), poderia ser bem
feita. Porém, o governo, do alto de sua arrogância e falta de humildade em
assumir erros, não reduz de fato o risco de racionamento, assim como os custos
desnecessários.
Eis a tragédia: a preservação de
uma falsa imagem cria um custo adicional. Apesar do desastre econômico e
financeiro já causado, poderia ser um pouco corrigido com um gesto de grandeza.
Mas nem isso acontece.
É difícil prever como se chega
nas eleições. Evidentemente, tal debate levaria o governo a uma situação
difícil. Mas a ausência de uma oposição que coloque tais questões no centro do
debate talvez conduza a qualquer resultado. É imprevisível.
É evidente que, se tivermos
desastres maiores, com uma hidrologia profundamente negativa, como tem sido até
agora em janeiro e fevereiro, se prolongando até abril, sem chuvas extraordinárias
fora do período chuvoso (como em 2012 e 2013, no Sudeste e Centro-Oeste, o que
já nos salvou de situações mais difíceis), o resultado político e suas
consequências não podem ser conjecturados no atual momento. Até porque, a
partir de abril e maio, o debate voltará à agenda, com o horizonte mais
definido até outubro e novembro, quando chegam as eleições.
Mas é claro que o governo vai
tentar empurrar todos os problemas com a barriga, independentemente do custo,
para chegar ao fim de outubro sem ter de fazer racionamento. E se tiver de
fazer um profundo racionamento depois, fará. Pela ausência de princípios que
tem pautado o governo até agora, podemos esperar qualquer coisa. Uma vez,
perguntaram se a senhora Rousseff era uma pessoa “capaz”. Minha resposta foi
sim, de que ela é capaz de tudo. E no setor energético está provado como é
capaz de tudo.
Valéria Nader, jornalista e
economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário