por Hélio Doyle
A grande imprensa brasileira, que nos últimos
anos exacerbou, por incompetência e ideologia, a superficialidade que sempre a
caracterizou, tem sido coerente ao tratar da vinda de quatro mil médicos
cubanos: limita-se a noticiar o fato e reproduzir as críticas das associações
corporativas de médicos e dos políticos oposicionistas. Mantém-se fiel à
superficialidade que é sua marca, acrescida de forte conteúdo ideológico
conservador e de direita.
Não conta, por exemplo, que médicos cubanos já
trabalharam no Brasil, atendendo a comunidades pobres e distantes nos estados
de Tocantins, Roraima e Amapá. Não houve nenhuma reclamação quanto à qualidade
desse atendimento e nenhum problema com o conhecimento restrito da língua
portuguesa. Os médicos cubanos tiveram de deixar o Brasil por pressão do
corporativismo médico brasileiro – liderado por doutores que gostam de
trabalhar em clínicas privadas e nas grandes cidades.
A grande imprensa não conta também que há mais
de 30 mil médicos cubanos trabalhando em 69 países da América Latina, da
África, da Ásia e da Oceania, lidando com pessoas que falam inglês, francês,
português e dialetos locais. Só no Haiti, onde a população fala francês e o
dialeto creole, há 1.200 médicos cubanos – que sustentam o sistema de saúde daquele
país e, como profissionais com alto nível de educação formal, aprendem
rapidamente línguas estrangeiras.
O professor John Kirk, da Universidade
Dalhousie, no Canadá, estudou a participação de equipes de saúde de Cuba em
vários países e é dele a frase seguinte: “A contribuição de Cuba, como ocorre
agora no Haiti, é o maior segredo do mundo. Eles são pouco mencionados, mesmo
fazendo muito do trabalho pesado”. Segredo porque a imprensa internacional –
especialmente a estadunidense — não gosta de falar do assunto.
Kirk contesta o argumento de que os médicos
cubanos que atendem as comunidades pobres em vários países não são eficientes
por não dominar as últimas tecnologias médicas: “A abordagem high-tech para as
necessidades de saúde em Londres e Toronto é irrelevante para milhões de
pessoas no Terceiro Mundo que estão vivendo na pobreza. É fácil ficar de fora e
criticar a qualidade, mas se você está vivendo em algum lugar sem médicos,
ficaria feliz quando chegasse algum”.
O problema dos que contestam a vinda de
médicos estrangeiros e, em especial dos cubanos, é que as pessoas que passam
anos ou toda a vida sem ver um médico ficarão muito felizes quando receberem a
atenção que os corporativistas do Brasil lhes negam e tentam impedir.
SOCIALISMO E GUERRA FRIA
Duas informações referentes à vinda de médicos
cubanos para o Brasil e que podem ser úteis aos que querem ir além do que diz a
grande imprensa:
- Cuba é um país socialista e por isso,
gostemos ou não, as coisas não funcionam exatamente como em um país
capitalista. Como é um país socialista, há a preocupação de manter baixos os
índices de desigualdade econômica e social. Por isso nenhuma empresa ou governo
estrangeiro contrata trabalhadores cubanos diretamente, em Cuba ou no exterior
(nesse caso quando a contratação é resultado de um acordo entre estados). Todos
são contratados por empresas estatais que recebem do contratante estrangeiro e
pagam os salários aos trabalhadores, sem grande discrepância em relação ao que
recebem os que trabalham em empresas ou organismos cubanos. Os médicos que
trabalham no exterior recebem mais do que os que trabalham em Cuba. Mas algo
como nem muito que seja um desincentivo aos que ficam, nem tão pouco que não
incentive os que saem.
- O governo dos Estados Unidos tem um programa
especial para atrair médicos cubanos que trabalham no exterior. Eles são
procurados por funcionários estadunidenses e lhes são oferecidas inúmeras
vantagens para “desertar”, como visto de entrada, passagem gratuita, permissão
de trabalho e dispensa de formalidades para exercer a atividade. Os que atuam
na América Latina são os mais procurados e uma condição para serem aceitos no
programa é que critiquem o sistema político cubano e digam que os médicos no
exterior são oprimidos e mantidos quase como escravos. Os que aceitam as
ofertas dos Estados Unidos, os que emigram para outros países ou ficam no país
que os recebe depois de terminado o contrato representam cerca de 3% dos
efetivos. No Brasil, mantida essa média, pode-se esperar que até 120 dos quatro
mil médicos cubanos “desertem”.
UM SISTEMA IRREAL
A citação a seguir é do New England Journal of
Medicine: “O sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo
mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do
fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu
problemas que o nosso [dos EUA] não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora
do dobro de médicos por habitante do que os EUA”.
Menções elogiosas ao sistema de saúde cubano e
a seus profissionais são frequentes em publicações especializadas e ditas por
autoridades médicas e organizações internacionais, como a Organização Mundial
de Saúde, a Organização Panamericana de Saúde e o Unicef. Mas mesmo assim,
querendo negar a realidade, médicos e políticos brasileiros insistem em negar o
óbvio, chegando ao absurdo de dizer que nossa população está correndo riscos ao
ser atendida pelos cubanos.
Para começar, os indicadores de saúde em Cuba
são os melhores da América Latina e estão à frente dos de muitos países
desenvolvidos. A mortalidade infantil, por exemplo (4,8 por mil), é menor do
que a dos Estados Unidos. Aliás, para os que gostam de dizer que Cuba estava
melhor antes da revolução de 1959, naquela época era de 60 por mil. A
expectativa de vida dos cubanos é também elevada: 78,8 anos.
Outro aliás quanto aos saudosistas: em 1959,
Cuba tinha seis mil médicos, sendo que três mil correram para os Estados Unidos
quando viram que não haveria mais lugar para o sistema privado de saúde e que
os doutores elitistas e da elite perderiam seus privilégios. Hoje tem 78 mil
médicos, um para cada 150 habitantes, uma das melhores médias do mundo. Isso
permite a Cuba manter mais de 30 mil médicos no exterior. Desde 1962, médicos
cubanos já estiveram trabalhando em 102 países.
Em 2012 formaram-se em Cuba 5.315 médicos
cubanos em 25 faculdades públicas e 5.694 estrangeiros, que estudam de graça na
Escola Latino-americana de Medicina (Elam). A Elam recebe estudantes de 116
países, inclusive dos Estados Unidos, e já formou 24 mil estrangeiros.
Os médicos cubanos se formam após seis anos de
graduação, incluindo um de internato, e mais três ou quatro anos de
especialização. Os generalistas, que atendem no sistema Médico da Família (um
médico e um enfermeiro para 150 a 200 famílias, e que moram na comunidade que
atendem) são preparados para atuar em clínica geral, pediatria,
ginecologia-obstetrícia e fazer pequenas cirurgias.
Dos quatro mil médicos que vêm para o Brasil,
todos têm especialização em medicina de família, 42% já trabalharam em pelo
menos dois países e 84% têm mais de 16 anos de atividade. Grande parte já atuou
em países de língua portuguesa, na África e em Timor-Leste. Foi em Timor, a
propósito, que ocorreu o fato seguinte: o embaixador estadunidense exigiu do
então presidente Xanana Gusmão que expulsasse os médicos cubanos. Xanana
perguntou quantos médicos dos Estados Unidos havia no Timor-Leste e quantos o
país mandaria para substituir os mais de duzentos cubanos que estavam lá.
Diante da resposta, de que havia apenas um, que atendia os diplomatas
norte-americanos, e que não viria mais nenhum, Xanana, simplesmente, disse que
os cubanos ficariam. E estão lá até hoje. Falando português.
OS LIMITES DO CORPORATIVISMO
1 – Sindicatos de trabalhadores existem para
defender os interesses das categorias profissionais que representam. São
corporativistas por definição.
2 – É natural que esses interesses conflitem
com os de seus empregadores, especialmente em questões ligadas à remuneração e
condições de trabalho.
3 – Muitas vezes os interesses de uma
categoria batem de frente com interesses de outras categorias, e aí cada
sindicato defende seus representados, o que também é natural.
4 – Outras vezes os interesses de uma
categoria colidem com interesses do país e da sociedade. Essa é uma questão
complicada: quem tem legitimidade para definir os interesses nacionais é a
população, que só é consultada quando elege seus governantes e representantes.
E esses governantes e representantes têm, muitas vezes, sua legitimidade
contestada.
A contradição entre interesses corporativos e
interesses nacionais e da sociedade, assim, só pode ser resolvida pelos que têm
legitimidade para expressar esses interesses nacionais e da sociedade em seu
conjunto.
Nos últimos dias, tivemos três bons exemplos
de como os interesses corporativos colidem com os da sociedade. São três causas
que podem interessar às categorias profissionais, mas violam a legislação e
ferem os direitos humanos e sociais:
- O sindicato dos servidores no Legislativo
defendeu que funcionários da Câmara e do Senado recebam remunerações que
superam o teto salarial que deve vigorar para todos.
- O sindicato dos aeroviários defendeu a
tripulação que criou absurdos e desnecessários constrangimentos a uma criança
de três anos e a sua família, por causa de uma doença não infecciosa.
- Os sindicatos de médicos são contra o
trabalho de médicos estrangeiros no Brasil, mesmo não havendo médicos
brasileiros interessados no trabalho que eles vão fazer.
O corporativismo é inevitável, e os interesses
corporativos devem ser discutidos e considerados. Não podem é prevalecer quando
contrariam interesses e direitos da sociedade: o teto salarial dos servidores
tem de ser respeitado, ninguém pode ser submetido a constrangimentos por causa
de uma doença e as pessoas têm o direito de receber assistência médica, seja de
um brasileiro ou de um estrangeiro.
SISTEMA CUBANO DÁ “DE LAVADA”
As frases a seguir são de um médico cubano
radicado no Brasil desde 2000. Insuspeito, pois abandonou Cuba. Formou-se lá e
se especializou em epidemiologia e administração da saúde. Trabalhou por dois
anos em Angola e veio para Santa Catarina em um acordo da prefeitura de Irati
com o governo de Cuba. Dois anos depois resolveu ficar no Brasil, onde vive com
a mulher e quatro filhos. Critica o sistema de pagamento aos médicos, dizendo
que ficava com 50% do que era pago pela prefeitura. Mesmo tendo “desertado”,
não entra na onda dos médicos brasileiros e dos oposicionistas de direita que
atacam a vinda dos cubanos.
O que o médico cubano Alejandro Santiago
Benítez Marín, 51 anos, disse ao portal G1:
“Em dois meses, eu já entendia
perfeitamente tudo (diferenças culturais, língua). Fazer medicina é igual em
todo o lugar, só muda o endereço”.
“Eu não sou contra que eles
venham, não. Os médicos cubanos são muito bons, nossa medicina é a melhor do
mundo. Só não concordo com a forma como o governo quer pagar, repassando o
dinheiro para Cuba e Cuba vai decidir a quantia que vai repassar. Isso não tem
cabimento”.
“Há médicos cubanos fazendo um
excelente trabalho no Norte e Nordeste. O Conselho Federal de Medicina tem nos
ofendido sem necessidade desde o início, chamando-nos de curandeiros,
feiticeiros. Eu sou incapaz de ofender um médico brasileiro, mesmo conhecendo
médicos brasileiros que cometem erros, a imprensa publica sempre. Tem médico
ruim e bom tanto no Brasil quanto em Cuba. Não temos culpa do que está
acontecendo no Brasil e que os médicos de fora têm que vir”.
“Em Cuba é bem mais fácil o
atendimento, não tem esta fila que há hoje no SUS, em que há a demora de três
meses para a realização de exames simples, como ultrassonografia ou
ressonância. Em Cuba este exame é feito no mesmo dia ou na mesma semana. Esta
demora faz o diagnóstico médico ter que esperar”.
“O sistema cubano dá ‘de lavada’
no SUS, tanto no atendimento normal quanto de emergência. A especialização
nossa é muito boa, tanto que Cuba exporta médicos para mais de 70 países”.
Hélio Doyle é jornalista.
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