A corrente campanha de desmonte
da Fundação Nacional do Índio (Funai), realizada pelo próprio governo federal,
teve seu ápice na última quarta-feira, 08, com a participação da ministra-chefe
da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, na audiência pública realizada pela Comissão de
Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, na Câmara dos
Deputados. Aplaudida pelos parlamentares ruralistas, ela correspondeu
prontamente aos desejos da bancada e anunciou que até o final deste semestre
será definido um novo marco regulatório para os processos de demarcações das
terras indígenas.
Porém, antes que o marco seja
oficializado, o Palácio do Planalto já suspendeu as demarcações de terras
indígenas no estado do Paraná, com base em análises da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa) sobre estudos da Funai. A intenção vai além:
relatórios do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e do Ministério das Cidades também
serão levados em consideração. Em outras ocasiões, o ministro da Justiça José
Eduardo Cardozo indicou que tais mudanças ocorreriam.
Logo em sua fala de abertura,
Gleisi afirmou que "a Funai é um órgão envolvido com os interesses
indígenas", e que, portanto, ela não é imparcial, colocando sob suspeição
a competência da instituição para desenvolver as atribuições que estão sob a
sua responsabilidade. A deixa da ministra para os ruralistas foi dada de forma
bastante clara, e não podia ser mais perfeita. Mas ainda havia mais por vir.
Após inúmeras falas nervosas e
contundentes em que a Funai, este órgão público do governo federal - é bom
lembrar - foi chamada pelos deputados ruralistas de criminosa, vigarista,
fraudulenta, incompetente, desonesta, dentre outros adjetivos, a ministra-chefe
da Casa Civil afirmou que "a Funai não está preparada e não tem critérios
claros para fazer a gestão de conflitos. Ela não tem a capacidade para fazer a
mediação [entre índios e agricultores] pelo envolvimento que tem com os
índios". Era tudo o que os ruralistas queriam ouvir: falava contra a Funai
a voz delegada pela Presidência da República.
Raposa no galinheiro
Neste sentido, além dos critérios
antropológicos, o governo também quer ter acesso a dados “qualificados” sociais
e econômicos das áreas em processos de demarcação. “Queremos um mapa
cartográfico sobre a ocupação do território. Queremos saber qual a
produtividade na área, por quanto tempo os produtores tomaram crédito do
governo, há quanto tempo há presença indígena porque os processos estão mais
tensos agora sobre áreas antropizadas”, declarou Gleisi, candidata virtual ao
governo do Paraná nas eleições de 2014, primeiro estado a ter as demarcações
suspensas.
A fala da ministra deixou
inúmeras dúvidas. Se a Funai, o órgão indigenista governamental, com o seu
histórico de atuação e quadro de profissionais especializados em questões
indígenas, não é a instituição mais adequada para realizar os processos de
demarcação, definidos, em última instância, pelo Ministério da Justiça, qual
poderá ter? A Embrapa e o Mapa – com atuações direcionadas para o
fortalecimento do agronegócio - têm legitimidade para isso? Se invasores, que
expulsaram indígenas há décadas de suas terras tradicionais, tiverem qualquer
tipo de produção nestas terras atualmente, isso impossibilita os índios de
recuperarem seus territórios? Quem vai ser a instituição que vai analisar as
contribuições de todos os órgãos e dar a palavra final sobre a demarcação da
terra?
Segundo o Secretário Executivo do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Cleber Buzatto tudo indica que, se
depender do governo Dilma, o presente chegará melhor que a encomenda para os
fazendeiros. Em artigo publicado na última quinta-feira, 9, o indigenista
afirma que o Palácio do Planalto fornece asas ao “modelo de democracia” dos
latifundiários, onde direitos são violentados sem nenhuma reação governamental.
“Diante disso, aos povos
indígenas não resta alternativa senão eles próprios fazerem a defesa de seus
direitos. No atual contexto, diferentemente do que ocorreu no episódio do
Código Florestal, quando a sociedade, mesmo contrária às mudanças, reagiu com
certa timidez diante da violenta ofensiva do agronegócio, para manterem seus
direitos, os povos indígenas precisarão de disposição para enfrentamentos mais
contundentes, urgentes e permanentes em todos os níveis, desde a aldeia até o
“centro” do poder, em Brasília”.
Tudo muito bem articulado
O espetáculo protagonizado pela
ministra da Casa Civil e pelos ruralistas já vinha sendo armado há bastante
tempo. Há meses, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo faz declarações à
imprensa indicando que para a atual gestão a Funai não deve ser o órgão com
preponderância para definir a demarcação das terras indígenas, tal como
determina a Constituição Federal. Mais recentemente, no dia 29 de abril, em
Campo Grande (MS), a presidenta Dilma foi vaiada por ruralistas que protestavam
contra a demarcação de terras indígenas. A partir daí uma avalanche de boatos
têm sido diariamente estampados nas páginas dos jornais sobre a possível
demissão da presidenta da Funai, Marta Maria do Amaral Azevedo.
Na última terça-feira, 7, com
base em análise da Embrapa, a ministra Gleisi pediu ao Ministério da Justiça a
suspensão de estudos da Funai para a demarcação de terras indígenas no Paraná.
Este ato foi divulgado pela mídia como “uma intervenção de Dilma na Funai” e
agradou bastante a ala ruralista um dia antes da ministra Gleisi ir “se
explicar” no parlamento sobre a demarcação de terras indígenas neste governo,
atendendo a convocação da bancada ruralista.
No entanto, a Embrapa soltou uma
nota nesta sexta-feira, 9, afirmando que o órgão de pesquisas “não tem por
atribuição opinar sobre aspectos antropológicos ou étnicos envolvendo a
identificação, declaração ou demarcação de terras indígenas no Brasil. Essa é
uma atribuição da Fundação Nacional do Índio – Funai, autarquia vinculada ao
Ministério da Justiça”. Mesmo assim, a Embrapa está analisando processos de
demarcação em outros três estados: Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e
Santa Catarina, que poderão ser suspensos a qualquer momento. O assessor
político da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib) Paulino Montejo
antevê as suspensões como ante-sala para um decreto que oficialize o flagrante
desrespeito aos artigos 231 e 232 em curso.
Coincidência ou não, a ministra
Gleisi, um dia após pedir a suspensão das demarcações no Paraná, compareceu à
audiência pública dos ruralistas, com as “boas” notícias sobre a efetivação de
um novo marco regulatório para as demarcações de terras indígenas até o mês de
junho. Na prática significa, em um primeiro momento, o esvaziamento e desmonte
completo da Funai.
A tragédia vai além
Municiados pelo fato de que
membros do alto escalão do governo, além da própria presidenta Dilma, colocaram
sob suspeita a própria Funai, os deputados ruralistas – todos homens, brancos,
com mais de 50 anos e falas incrivelmente parecidas e defensoras dos interesses
das elites – sentiram-se totalmente à vontade e apelaram para o princípio da
isonomia constitucional, demandando que a suspensão dos processos de demarcação
seja feita em todos os estados do Brasil.
“Esta audiência pública é um
divisor de águas e tem como objetivo a suspensão de todas as demarcações. Não
há alternativa”, afirmou de modo bastante nervoso o deputado Vilson Covatti
(PP/SC), conhecido detrator dos povos indígenas e de seus aliados, imputando
falsas acusações e respondendo a processos por tais atitudes em seu estado de
origem.
A instalação da Comissão Especial
sobre a PEC 215, que passa para o Legislativo a prerrogativa de definir as
demarcações de terras indígenas, e a vigência da Portaria 303, que estende as
condicionantes da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol para todas
as terras indígenas do Brasil, também foram temas recorrentes e exigências
apresentadas pelos ruralistas. Em relação a esta Portaria, o Advogado Geral da
União (AGU), ministro Luís Inácio Adams, também assumindo claramente de que
lado está, afirmou que “quanto mais rápido for o julgamento dela, maior clareza
e certeza teremos em relação às condicionantes, que estão absolutas corretas em
seu mérito. O objetivo é dar repercussão geral e a segurança do precedente. E,
a partir disso, todos os processos de demarcação não finalizados deverão ser
revistos retroativamente a partir desse julgamento da Portaria”.
Não satisfeitos com a série de
ataques orquestrados contra os povos indígenas, os parlamentares ruralistas
ainda demandaram a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da
Funai, proposta recebida com aplausos pela claque formada pelos latifundiários
vindos do Paraná, Bahia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. No total, segundo os
próprios deputados, cerca de 1.100 representantes dos fazendeiros foram
trazidos destes estados para pressionar o governo federal.
Por outro lado, 50 indígenas
estiveram na audiência. Com o plenário tomado pelos ruralistas, que
ultrapassavam em muito o número de 50 representantes acordado com a presidência
da Câmara, os indígenas demonstraram força e coragem. De forma altiva, deixaram
seu recado – apesar da censura imposta pelos ruralistas. Após cerca de duas
horas, com gritos de “aqui é casa de ruralista e não de índio”, contra as
manifestações preconceituosas dos deputados e da claque ruralista. Segundo
Fernando Giacobo, presidente da Comissão de Agricultura e Pecuária, que
presidia a audiência, os índios não podiam se manifestar. No entanto, ele não
deu o mesmo tratamento aos ruralistas, que se manifestavam com aplausos após
cada fala dos ruralistas. Assim como a presidente Dilma Russeff, os
latifundiários não gostam de serem contrariados.
Os pequenos usados pelos grandes
O deputado Dionilso Marcon
(PT-RS) alertou para a necessidade de explicitar o jogo armado pela bancada
ruralista que, segundo ele, nunca se manifesta em nenhuma ação concreta para
ajudar os índios que estão em situação de miséria. “O que me entristece é ver
os pequenos agricultores e os quilombolas sendo colocados contra os índios. Os
coronéis se escondem e estão usando os pequenos para atingir os seus
objetivos”, afirmou. Ele também defende que a regularização fundiária precisa
ser considerada. “São 196 proprietários que detém 336 mil hectares de terra.
Destes, alguns são brasileiros. Muitas são multinacionais estrangeiras
defendidas por estes que aqui se posicionam contra os índios”, concluiu.
Já o deputado Ivan Valente
(PSOL-SP) afirmou que para discutir questões indígenas importantes, como a PEC
215, era “fundamental que caciques indígenas estivessem na mesa, já que os
caciques do agronegócio, como a senadora Kátia Abreu (PSD/TO) e o deputado
Homero Pereira (PSD/MT), compuseram a mesa da audiência”. Ele também chamou a
PEC 215 de excrescência, que tanto a sociedade como o governo precisam se opor.
Assim como Marcon, Valente destacou a importância de separar os interesses dos
pequenos agricultores e os dos latifundiários.
“A Funai virou a Geni. Os índios
não são responsáveis pelos problemas que estão ocorrendo. Eles são vítimas. Há
100 milhões de hectares na mão de proprietários particulares, e mesmo assim,
não se discute a reforma agrária e o sistema fundiário. As soluções são
complexas e não podem ser encaminhadas somente para beneficiar o agronegócio,
sojeiros e madeireiros ”, afirmou Valente. Em relação à CPI da Funai, ele
afirmou que até a assinaria desde que ela analisasse as atrocidades e
violências cometidas contra os povos indígenas relatadas pelo recém descoberto
Relatório Figueiredo, realizado pela ditadura militar em 1967. “Dois mil
indígenas Waimiri-Atroari desapareceram na Amazônia”, exemplificou.
Durante a audiência, vários
deputados afirmaram que os índios são bancados por organizações internacionais
e movimentos irresponsáveis, alegando que eles atuam assim porque não querem
que o Brasil se desenvolva e que chegam, inclusive, a importar índios de outros
países, como Paraguai e Bolívia. No entanto, apesar da contundência das
denúncias, elas ficaram no vazio porque nenhum deles nomeou sequer o nome de
uma dessas organizações e movimentos.
No lugar errado, na hora errada?
Ou muito pelo contrário...
O deputado Sarney Filho (PV/MA)
fez a última fala da audiência e afirmou que quem deveria estar naquela sessão
respondendo às questões relativas à Funai era o ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, já que esta instituição indigenista é vinculada ao seu ministério.
“Com todo respeito, ministra, a Casa Civil não tem nenhuma atribuição
constitucional para discutir as questões indígenas”, declarou ele, que defendeu
o quadro qualificado da Funai e a sua atuação. “O Congresso quer promover um
retrocesso na legislação. Trata-se de uma manobra para não se criar mais
nenhuma terra indígena”, concluiu ele.
A participação da ministra-chefe
da Casa Civil na audiência convocada pelos ruralistas, o conteúdo de sua fala,
assim como a decisão de suspender as demarcações indígenas no Paraná são
medidas consideradas pelo movimento indígena como um ato político único,
importante para agradar os ruralistas já que ela é a provável candidata do PT
ao governo paranaense. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, edição de 10 de
maio, assinada pelo repórter Aguirre Talento, “quando se candidatou ao Senado,
em 2010, Gleisi recebeu R$ 390 mil de empresas ligadas ao agronegócio”. Pelo
andar dos tratores, o apoio poderá ser bem maior no ano que vem.
Fonte: site MST e CIMI por Patrícia Bonilha
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