Pepe Escobar (*)
O campo de batalha está traçado.
O Sul Global deveria estar
consciente de que nenhuma nação da Ásia Ocidental, América Latina e África se
juntou ao comboio das sanções de Washington.
Moscou ainda nem sequer anunciou
o seu próprio pacote de contra sanções. No entanto, um decreto oficial
"Sobre a ordem temporária das obrigações para com certos credores
estrangeiros" que permite às empresas russas liquidarem as suas dívidas em
rublos, dá uma pista do que está para vir.
As contra-medidas russas giram
todas em torno deste novo decreto presidencial, assinado no sábado passado, que
o economista Yevgeny Yushchuk define como uma "mina terrestre de
retaliação nuclear".
Funciona assim: para pagar
empréstimos obtidos de um país sancionador que excedam 10 milhões de rublos por
mês, uma empresa russa não tem de fazer uma transferência. Ela pede a um banco
russo que abra uma conta correspondente em rublos sob o nome do credor. A
seguir a empresa transfere rublos para esta conta à taxa de câmbio do dia e é
tudo perfeitamente legal.
Pagamentos em divisas
estrangeiras só passam pelo Banco Central numa base casuística. Eles devem
receber autorização especial da Comissão Governamental para o Controlo do
Investimento Estrangeiro.
O que isto significa na prática é
que a maior parte dos cerca de US$478 mil milhões da dívida externa russa pode
"desaparecer" dos balanços dos bancos ocidentais. O equivalente em
rublos será depositado algures, em bancos russos, mas os bancos ocidentais, tal
como estão as coisas, podem não ter acesso a ele.
É discutível se esta estratégia
simples foi o produto daqueles cérebros não soberanistas reunidos no Banco
Central russo. É mais provável que tenha havido contributos do influente
economista Sergei Glazyev, um antigo conselheiro de topo do Presidente russo
Vladimir Putin sobre integração regional: aqui está uma edição revista, em inglês,
do seu ensaio inovador Sanctions and Sovereignty, que resumi anteriormente.
Enquanto isso, o Sberbank
confirmou que irá emitir os cartões de débito/crédito Mir da Rússia em conjunto
com o Union Pay da China. O Alfa-Bank – o maior banco privado da Rússia –
também emitirá cartões de crédito e de débito Union Pay. Embora introduzido há
apenas cinco anos, 40% dos russos já possuem um cartão Mir para uso interno.
Agora poderão também utilizá-lo internacionalmente, através da enorme rede do
Union Pay. E sem Visa e Mastercard, as comissões sobre todas as transações
permanecerão na esfera Rússia-China. Desdolarização efetiva.
Sr. Maduro, dê-me um pouco de
petróleo
As negociações das sanções
iranianas em Viena podem estar a chegar à última fase – como reconhecido até
pelo diplomata chinês Wang Qun. Mas foi o ministro dos Negócios Estrangeiros
russo, Sergei Lavrov, que introduziu uma nova variável crucial nas discussões
finais de Viena.
Lavrov tornou a sua exigência da
décima primeira hora bastante explícita: "Pedimos uma garantia escrita...
de que o atual processo [de sanções à Rússia] desencadeado pelos Estados Unidos
não prejudica de forma alguma o nosso direito ao comércio livre e pleno, à
cooperação económica e de investimento e à cooperação técnico-militar com a
República Islâmica".
Segundo o acordo do Plano de Ação
Global Conjunto (Joint Comprehensive Plan
of Action, JCPOA) de 2015, a Rússia recebe urânio enriquecido do Irão e troca-o
por yellowcake e, em paralelo, está a reconverter a central nuclear Fordow do
Irão num centro de investigação. Sem as exportações iranianas de urânio
enriquecido não há simplesmente nenhum acordo da JCPOA. É surpreendente que o secretário
de Estado dos EUA, Blinken, pareça não entender isso.
Toda a gente em Viena, até os que
estão à margem, sabe que para todos os atores assinarem o renascimento da
JCPOA, nenhuma nação deve ser individualmente visada em termos de comércio com
o Irão. Teerão também o sabe.
Assim, o que agora está a
acontecer é um jogo elaborado de espelhos persas, coordenado entre as
diplomacias russa e iraniana. O Embaixador de Moscovo em Teerão, Levan
Jagaryan, atribuiu a reacção feroz a Lavrov em alguns bairros iranianos a um
"mal-entendido". Tudo isto será jogado nas sombras.
Um elemento extra é que, segundo
uma fonte de inteligência do Golfo Pérsico com acesso privilegiado iraniano,
Teerã já pode estar a vender até três milhões de barris de petróleo por dia,
"portanto, se assinarem um acordo, este não afetará de modo algum o
fornecimento, apenas lhes será pago mais".
.
A administração americana do
Presidente Joe Biden está agora absolutamente desesperada: hoje proibiu todas
as importações de petróleo e gás da Rússia, que por acaso é o segundo maior
exportador de petróleo para os EUA, atrás do Canadá e à frente do México. A
grande "estratégia de substituição" energética russa dos EUA consiste
em mendigar petróleo ao Irão e à Venezuela.
Assim, a Casa Branca enviou uma
delegação para falar com o Presidente venezuelano Nicolás Maduro, liderada por
Juan Gonzalez, o principal conselheiro da Casa Branca para a América Latina. A
oferta dos EUA é "aliviar" as sanções contra Caracas em troca de
petróleo.
O governo dos Estados Unidos
passou anos – senão décadas – a queimar todas as pontes com a Venezuela e o
Irão. Os EUA destruíram o Iraque e a Líbia, e isolaram a Venezuela e o Irão, na
sua tentativa de tomar os mercados petrolíferos globais – só para acabar
miseravelmente por tentar comprar a ambos e escapar a ser esmagado pelas forças
económicas que desencadeou. Isto prova, mais uma vez, que os "decisores
políticos" imperiais são absolutamente ignorantes.
Caracas irá exigir a eliminação
de todas as sanções contra a Venezuela e a devolução de todo o seu ouro
confiscado. E parece que nada disto foi esclarecido com o 'Presidente' Juan
Guaido, o qual desde 2019 era o único líder venezuelano "reconhecido"
por Washington.
Coesão social dilacerada
Enquanto isso, os mercados de
petróleo e gás estão em pânico total. Nenhum trader ocidental quer comprar gás
russo; e isso nada tem a ver com a empresa estatal russa de energia Gazprom, a
qual continua a abastecer devidamente os clientes que assinaram contratos com
tarifas fixas, de US$100 a US$300 (outros estão a pagar mais de US$3.000 no
mercado spot).
Os bancos europeus estão cada vez
menos dispostos a conceder empréstimos para o comércio de energia com a Rússia
devido à histeria das sanções. Uma forte pista de que o gasoduto Rússia-Alemanha
Nord Stream 2 pode estar literalmente enterrado é que o importador
Wintershall-Dea anulou a sua parte do financiamento, assumindo de facto que o
gasoduto não será lançado.
Todos os que têm cérebro na
Alemanha sabem que dois portos metaneiros extra para a recepção de gás natural
liquefeito (GNL) – ainda por construir – não serão suficientes para as
necessidades de Berlim. Simplesmente não há GNL suficiente para os abastecer. A
Europa terá de lutar com a Ásia sobre quem pode pagar mais. A Ásia vence.
A Europa importa cerca de 400 mil
milhões de metros cúbicos de gás por ano, sendo a Rússia responsável por 200
mil milhões. É impossível a Europa encontrar 200 mil milhões de dólares em
qualquer outro lugar para substituir a Rússia – seja na Argélia, no Qatar ou no
Turquemenistão. Para não mencionar a sua escassez dos portos metaneiros
necessários.
Assim, obviamente, o principal
beneficiário de toda esta confusão serão os EUA – que poderão impor não só os
seus terminais e sistemas de controlo, mas também lucrar com empréstimos à UE,
vendas de equipamento, e acesso pleno a toda a infraestrutura energética da UE.
Todas as instalações de GNL, tubagens e armazéns serão ligados a uma única rede
com uma única sala de controlo: um sonho empresarial americano.
A Europa será deixada com uma
produção de gás reduzida para a sua – em declínio – indústria; perdas de
emprego; diminuição dos padrões de qualidade de vida; aumento da pressão sobre o
sistema de segurança social; e, por último mas não menos importante, a
necessidade de solicitar empréstimos extra americanos. Algumas nações voltarão
ao carvão para aquecimento. O Desfile Verde será lívido.
E quanto à Rússia? Como hipótese,
mesmo que todas as suas exportações de energia fossem reduzidas – e não o
serão, os seus principais clientes estão na Ásia – a Rússia não teria de
utilizar as suas reservas estrangeiras.
O ataque russo fóbico total às
exportações russas também visa metais como o paládio – vital para a
electrónica, desde computadores portáteis a sistemas aeronáuticos. Os preços
estão a disparar. A Rússia controla 50% do mercado global. Depois há os gases
nobres – néon, hélio, árgon, xenon – essenciais para a produção de microchips.
O titânio subiu um quarto e tanto a Boeing – em um terço – como a Airbus – em
dois terços – dependem do titânio da Rússia.
Petróleo, alimentos,
fertilizantes, metais estratégicos, gás néon para semicondutores: tudo a arder
aos pés da Feiticeira Rússia.
Alguns ocidentais que ainda
apreciam a realpolitik bismarckiana começaram a interrogar-se se a blindagem da
energia (no caso da Europa) e os fluxos de mercadorias selecionadas das sanções
não terá tudo a ver com a proteção de uma imensa extorsão: o sistema de
commodities derivativas.
Afinal, se isso implodir, devido
a uma escassez de mercadorias, todo o sistema financeiro ocidental explode.
Isto é que é um verdadeiro fracasso do sistema.
A questão chave para o Sul Global
digerir é que o "ocidente" não está a cometer suicídio. O que temos
aqui, essencialmente, são os Estados Unidos a destruírem deliberadamente a
indústria alemã e a economia europeia – bizarramente, com a sua conivência.
Destruir a economia europeia
significa não permitir espaço extra de mercado para a China, e bloquear o
inevitável comércio extra que será uma consequência direta de trocas mais
estreitas entre a UE e a Parceria Económica Global Regional (Regional
Comprehensive Economic Partnership, RCEP), o maior acordo comercial do mundo.
O resultado final será os EUA a
comerem as poupanças europeias ao almoço enquanto a China expande a sua classe
média para mais de 500 milhões de pessoas. A Rússia vai sair-se muito bem, tal
como esboça Glazyev: soberana – e autossuficiente.
O economista americano Michael
Hudson esboçou de forma concisa os lineamentos da auto implosão imperial. Mas
muito mais dramático, como catástrofe estratégica, é como os surdos, mudos e
cegos desfilam em direção a uma recessão profunda e a uma quase hiperinflação,
que irá dilacerar o que resta da coesão social do Ocidente. Missão Cumprida.
08/Março/2022
[*] Jornalista.
O original encontra-se em
thecradle.co/Article/columns/7672
Este artigo encontra-se em
resistir.info
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