Isso não só converte o Brasil em
um ator vacilante em iniciativas como o Mercosul ou a Unasul, o que incide
negativamente sobre sua gravitação internacional, mas o conduz a uma perigosa
paralisia em questões cruciais de ordem doméstica. Por exemplo, ao não poder
resolver desde 2009 onde adquirir os 36 aviões caça que necessita para
controlar seu imenso território e, muito especialmente, a grande bacia
amazônica e subamazônica, apesar do risco que implica dilatar a aquisição das
aeronaves aptas para tão delicada tarefa.
por Atilio Borón
As últimas semanas foram pródigas
em acontecimentos reveladores dos alcances da contraofensiva desatada por
Washington com vistas a dinamitar os diversos processos integracionistas em
marcha na América Latina.
O Mercosul e a Unasul são os
alvos mais óbvios, porém, a Celac também está na mira e, ao demonstrar maior
gravitação nos assuntos do hemisfério, também será objeto dos mais encarniçados
ataques. Uma das armas mais recentemente utilizadas pela Casa Branca tem sido a
Aliança do Pacífico, engendro típico da superpotência para mobilizar seus peões
ao sul do Rio Bravo e utilizá-los como eficazes "cavalos de Troia” para
cumprir os desígnios do império. Outra Aliança, a "mal nascida”, segundo o
insigne historiador e jornalista argentino Gregorio Selser, foi inventada, no
começo dos anos 60 do século passado, por J. F. Kennedy para destruir a
Revolução Cubana. Aquela, a Aliança para o Progresso, que naquele tempo deu
suporte a alguns prognósticos pessimistas entre as forças antiimperialistas,
fracassou estrepitosamente.
A atual não parece destinada a
correr melhor sorte. Porém, derrotá-la exigirá, da mesma forma que aconteceu
com sua antecessora, toda a firmeza e inteligência dos movimentos sociais, das
forças políticas e dos governos opostos – em diversos graus, como é evidente ao
observar o panorama regional – ao imperialismo. Fraquezas e debilidades
políticas e organizativas unidas à credulidade ante as promessas da Casa
Branca, ou às absurdas ilusões provocadas pelos cantos de sereia de Washington,
marcariam o caminho de uma fenomenal derrota para os povos de Nossa América.
Nesse sentido, é mais do que
preocupante a crônica indecisão de Brasília em relação ao papel que deve jogar
nos projetos integracionistas em curso em Nossa América. E isso por uma razão
bem fácil de compreender. Henry Kissinger, que em sua condição de conotado
criminoso de guerra une a de ser um fino analista do cenário internacional, o
colocou de manifesto quando, satisfeito com o realinhamento da ditadura militar
brasileira após a derrubada de João Goulart, acunhou uma frase que fez
história. Sentenciou que “para onde o Brasil se incline, a América Latina
também se inclinará”. Isso já não é tão certo hoje porque a maré bolivariana
mudou o mapa sociopolítico regional para bem; porém, mesmo assim, a gravitação
do Brasil no plano hemisférico continua sendo muito importante. Se seu governo
impulsionasse com resolução os diversos processos integracionistas (Mercosul,
Unasul, Celac), outra seria sua história.
Porém, Washington vem trabalhando
há tempos sobre a direção política, diplomática e militar do Brasil para que
modere sua intervenção nesses processos. E se notam êxitos consideráveis. Por
exemplo, explorando a ingênua credulidade do Itamaraty, quando desde os Estados
Unidos lhes dizem que garantirão para o Brasil uma cadeira permanente no
Conselho de Segurança da ONU, enquanto a Índia e o Paquistão (duas potências
atômicas) ou a Indonésia (a maior nação muçulmana do mundo) e o Egito, a
Nigéria (país mais povoado da África) e o Japão e a Alemanha, sem ir mais
longe, teriam que conformar-se em manter seu status atual de membros
transitórios desse organismo.
No entanto, outra hipótese diz
que talvez não se trata somente de ingenuidade, porque a opção de associar-se
intimamente a Washington seduz a muitos em Brasília. Prova disso é que, poucos
dias depois de assumir seu cargo, o atual chanceler de Dilma Rousseff, Antonio
Patriota concedeu uma extensa reportagem a Paulo César Pereira, da revista
Veja. A primeira pergunta formulada pelo jornalista foi a seguinte: “Em todos
seus anos como diplomata profissional, que imagem tem dos Estados Unidos?”.
A resposta foi assombrosa,
sobretudo por vir de um homem que, supõe-SE, deve defender o interesse nacional
brasileiro e, através das instituições, como o Mercosul, a Unasul e a Celac,
participar ativamente na promoção da autodeterminação dos países da área: “É
difícil falar de maneira objetiva porque tenho um envolvimento emocional (sic!)
com os Estados Unidos através de minha família, de minha mulher e de sua
família. Existem aspectos da sociedade americana que admiro muito”.
O razoável teria sido que, de
imediato, fosse pedida a sua demissão por "incompatibilidade emocional”
para o exercício de seu cargo, para falar com delicadeza, coisa que não
aconteceu. Por quê? Porque é óbvio que no governo brasileiro coexistem duas
tendências: uma, moderadamente latino-americanista, que prosperou como nunca
sob o governo de Lula; e, outra, que acredita que o esplendor futuro do Brasil
passa por uma íntima associação com os Estados Unidos e, em parte, com a
Europa, e que recomenda esquecer-se de seus revoltosos vizinhos. Essa corrente
ainda não é hegemônica no Palácio do Planalto. Porém, sem dúvida, hoje em dia
encontra ouvidos muito mais receptivos do que antes. Essa mudança na relação de
forças entre ambas as tendências saiu à luz em inúmeras ocasiões nos últimos
dias.
Apesar de ser um dos países
espionados pelos Estados Unidos, e que Brasília tenha dito que o fato era
“extremamente grave”, divulgou que não daria asilo político a Edward Snowden,
que denunciou a gravíssima ofensa inferida ao gigante sul-americano. Outra
coisa: a reação muito lenta da presidenta brasileira ante o sequestro do qual
foi vítima Evo Morales na semana passada: se os presidentes de Cuba, Equador,
Venezuela e Argentina (amém do Secretário Geral da Unasul, Alí Rodríguez)
tardaram apenas poucos minutos após a divulgação da notícia para expressar seu
repúdio ao acontecido e sua solidariedade ao presidente boliviano, Rousseff
necessitou quase quinze horas para fazê-lo.
Depois, inclusive, das duras
declarações do Secretário Geral da OEA, cuja condenação foi conhecida quase
simultaneamente à dos primeiros. Conflitos e ‘puxa-encolhe’ no interior do
governo que, aduzindo um inverossímil pretexto (os massivos protestos populares
dos dias anteriores, já menos expressivos), impediram que a mandatária
brasileira fosse ao encontro que se realizou em Cochabamba, uma cidade
localizada a escassas duas horas e meia de avião a partir de Brasília,
debilitando o impacto global dessa reunião e, em plano objetivo, coordenando-se
com a estratégia dos governos da Aliança do Pacífico que, como o sugerira o
presidente Rafael Correa, bloquearam o que deveria ter sido uma cúpula
extraordinária de presidentes da Unasul.
Para uma América Latina
emancipada dos grilhões neocoloniais, é decisivo contar com o Brasil. Porém,
isso não será possível a não ser a conta gotas enquanto não se resolva a favor
da América Latina o conflito entre aqueles dois projetos em pugna.
Isso não só converte o Brasil em
um ator vacilante em iniciativas como o Mercosul ou a Unasul, o que incide
negativamente sobre sua gravitação internacional, mas o conduz a uma perigosa
paralisia em questões cruciais de ordem doméstica. Por exemplo, ao não poder
resolver desde 2009 onde adquirir os 36 aviões caça que necessita para
controlar seu imenso território e, muito especialmente, a grande bacia
amazônica e subamazônica, apesar do risco que implica dilatar a aquisição das
aeronaves aptas para tão delicada tarefa. Uma parte do alto mando e a
burocracia política e diplomática se inclina por um reequipamento com aviões
estadunidenses, enquanto que outra propõe adquiri-los na Suécia, na França ou
na Rússia. Nem sequer Lula pôde resolver a discussão.
Essa absurda paralisia se
destravaria facilmente se os envolvidos na tomada de decisões se fizessem uma
simples pergunta: quantas bases militares têm na região cada um dos países que
nos oferecem seus aviões para vigiar nosso território? Se fizessem a pergunta,
a resposta seria a seguinte: Rússia e Suécia não têm nenhuma; a França tem uma
base aeroespacial na Guiana Francesa, administrada conjuntamente com a OTAN e
com presença de pessoal militar estadunidense; e os Estados Unidos têm 76 bases
militares na região, um punhado delas alugadas a –ou coadministradas com –
terceiros países como o Reino Unido, a França e a Holanda.
Algum burocrata do Itamaraty ou
algum militar brasileiro treinado em West Point poderia aduzir que essas se
encontram em países distantes, que estão no Caribe e que têm como missão vigiar
a Venezuela bolivariana. Porém, equivocam-SE: a dura realidade é que, enquanto
a Venezuela é espreitada por 13 bases militares norte-americanas instaladas em
seus países limítrofes, o Brasil encontra-se literalmente rodeado por 23 bases,
que se convertem em 25 se somarmos as duas bases britânicas de ultramar, com
que contam os EUA – via Otan – no Atlântico equatorial e meridional, nas Ilhas
Ascensión y Malvinas, respectivamente.
Por pura coincidência, as grandes
jazidas submarinas de petróleo do Brasil encontram-se aproximadamente na metade
do caminho entre ambas as instalações militares. Ante essa inapelável
evidência, como é possível que ainda haja dúvidas sobre a quem comprar os
aviões que o Brasil necessita? A única hipótese realista de conflito que esse
país tem (e toda a América Latina) é com os Estados Unidos. Nessa parte do
mundo há alguns que prognosticam que o enfrentamento será com a China, ávida
por ter acesso aos imensos recursos naturais da região. Porém, enquanto a China
invade a região com incontáveis supermercados, Washington o faz com toda a
força de seu fenomenal músculo militar, porém, rodeando, principalmente, o
Brasil.
E, como se fizesse falta, George
W. Bush reativou também a IV Frota (em outra dessas grandes casualidades da
história!) justamente poucas semanas após o presidente Lula anunciar o
descobrimento da grande jazida de petróleo no litoral paulista. Apesar disso,
persiste a lamentável indefinição de Brasília. Ou seus dirigentes ignoram os
ensinamentos da história? Não sabiam que John Quincy Adams, o sexto presidente
do país do Norte, disse que "Estados Unidos não têm amizades permanentes,
mas interesses permanentes”?
Os funcionários a cargo desses
temas desconhecem que nem bem o presidente Hugo Chávez começou a ter suas
primeiras diferenças com Washington, a Casa Branca dispôs o embargo de todos os
envios de peças, reposições e renovados sistemas de aeronavegação e combate
para a frota dos F-16 que a Venezuela havia comprado, motivo pelo qual tudo
ficou inutilizado e teve que ser substituído? Não é necessária muita
inteligência para imaginar o que poderia acontecer, o que não é improvável,
caso acontecessem sérias diferenças entre o Brasil e os EUA, por exemplo, na disputa
pelo acesso a alguns minerais estratégicos que se encontram na Amazônia; ou
pelo petróleo do pré-sal; ou o cenário do "caso pior”, se Brasília
decidisse não acompanhar Washington em uma aventura militar encaminhada a
produzir "uma mudança de regime” em algum país da América Latina ou do
Caribe, replicando o modelo utilizado na Líbia ou o que se está empregando a
ferro e fogo na Síria.
Nesse caso, a represália que
mereceria o "aliado desleal”, nesse hipotético caso, o Brasil, que
renuncia a cumprir com seus compromissos, seria a mesma que se aplicou a
Chávez, e o Brasil ficaria indefeso. Tomara que essas duras realidades comecem
a ser discutidas publicamente e que essa grande nação sul-americana possa
começar a discernir com clareza onde estão seus amigos e quem são seus
inimigos, por mais que hoje se disfarcem com pele de ovelha. Isso poderia por
fim a suas crônicas vacilações.
Tomara que esta semana do
Mercosul, em Montevidéu, e a próxima, da Unasul, possam converter-se nas
ocasiões propícias para essa reorientação da política externa do Brasil.
Atilio A. Boron é sociólogo argentino
fonte: Correio da cidadania. Tradução: ADITAL
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